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Rajadas de metralhadora no jogo do São Paulo? | by Alexandre Giesbrecht | Jogos do São Paulo
Reprodução Mundo Deportivo.

Rajadas de metralhadora no jogo do São Paulo?

Do sequestro de um adversário a policiais supostamente disparando suas metralhadoras a poucos metros dos jogadores são-paulinos: a excursão à Venezuela em 1963 esteve longe de ser tranquila.

Alexandre Giesbrecht
Jogos do São Paulo
22 min readAug 25, 2018

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Por Alexandre Giesbrecht | Twitter | 5 de agosto de 2018

OO primeiro jogo da história entre São Paulo e Real Madrid, pela Pequena Taça do Mundo de 1963, teve muita confusão, mas não durante o jogo, realizado em Caracas, na Venezuela: o momento turbulento vivido por aquele país é que fez com que os jogadores dos dois times não tivessem muito sossego nos momentos em que não estavam jogando. Tudo tinha começado na manhã daquele 23 de agosto, quando o astro argentino naturalizado espanhol Alfredo di Stéfano, que defendia o Real Madrid, foi sequestrado: terroristas da FALN (Fuerzas Armadas de Liberación Nacional) disfarçados de policiais invadiram o apartamento do jogador no Hotel Potomac e o levaram.

“Pela primeira vez em minha vida conheci o medo”, declararia di Stéfano, dias mais tarde, em declaração reproduzida no Diário da Noite. “Senti essa estranha sensação quando os sequestradores vendaram os meus olhos. Pensei em meus filhos, em minha esposa, em meus pais… não sabia se voltaria a vê-los. Dormia tranquilamente em meu quarto do hotel, quando alguém bateu na porta e acordou-me. Olhei o relógio e vi que ainda não eram seis da manhã. Ao abrir a porta, dei de encontro com três desconhecidos, que disseram ser agentes da Polícia Secreta. Mostraram-me um distintivo da polícia. Como me encontrava em um país estrangeiro, concordei em acompanhá-los, porém logo percebi que não eram policiais. A partir daquele momento, até que voltei a pôr os pés em território espanhol, não fui capaz de dormir em paz.”

Os sequestradores, todos armados com pistolas, levaram-no, em um carro, até o cativeiro, onde revelaram suas intenções. “Não vai lhe ocorrer nada”, disseram. “Estamos procurando sequestrar-lhe desde que chegou a Caracas com sua equipe. Pretendemos chamar, por este meio, a atenção do mundo para nossa luta com o governo da Venezuela. Queríamos ontem interceptar a estrada pela qual passaria o ônibus em que vocês se encontravam, mas desistimos da tentativa. Havia muita gente.” Foi-lhe permitido ouvir rádio, caso ele quisesse, e também perguntaram se ele queria comer ou beber alguma coisa, mas di Stéfano respondeu apenas que só queria ser libertado. O chefe dos sequestradores, um cubano que se apresentou como Canales, retrucou: “Ficará livre, porém ainda não.” (Canales era cubano, mas vivia na Venezuela desde os dois anos de idade. Seu nome real era Paúl del Río, e ele tinha apenas vinte anos na época.)

Ter ouvido rádio acabou servindo para deixá-lo nervoso, quando soube que seu filho estava doente em Madri e também quando informaram que a polícia estava à sua procura. Di Stéfano ficava sozinho em um dos quartos do apartamento, com as janelas sempre fechadas, enquanto os sequestradores ocupavam o outro.

AA viagem do Tricolor para Caracas foi tranquila para os padrões da época. A delegação deixou São Paulo às 21 horas de 16 de agosto, um dia depois da vitória por 4 a 1 sobre o Santos, que fez o adversário fugir de campo aos dez minutos do segundo tempo. A primeira escala foi o Rio de Janeiro, onde os são-paulinos pegaram outro avião rumo a Caracas, já na madrugada do dia 17.

A princípio, a estreia, contra o Porto, seria ainda naquela noite, mas os organizadores do torneio preferiram adiá-la por 24 horas, a fim de propiciar que o clube brasileiro rendesse o máximo possível. Não porque a organização fosse boazinha, mas, sim, porque temia que uma eventual má apresentação são-paulina pudesse afetar a renda do jogo contra o Real Madrid, previsto para dali a seis dias.

A vitória por 2 a 1 foi toda construída no primeiro tempo, com gols de Cecilio Martínez, aos dois, e Pagão, aos oito minutos, enquanto Joaquim descontou para os portugueses, aos 36. A atuação são-paulina foi comemorada pelo Diário Popular, que destacou:

Indiscutivelmente, a impressão causada pelo São Paulo foi a melhor possível. A maneira como o quadro se conduziu causou uma grande satisfação, principalmente porque o Porto alinha em suas fileiras valores de indiscutível categoria técnica e que militam também na seleção daquele país. Todavia, jogando um futebol brilhante, à base de algum individualismo de seus defensores e exibindo virtudes que agradaram, principalmente pela facilidade com que superavam os adversários, nos primeiros movimentos, os brasileiros do São Paulo deram uma nítida impressão do seu poderio técnico, marcando dois tentos e dando a todos a certeza de que aquele placar poderia ser mais amplo. Entretanto, os seus elementos não mantiveram o mesmo ritmo e deram a sensação de estar se poupando ainda para os jogos que terão pela frente na atual excursão.

Dois lances da partida contra o Porto: o goleiro Américo defende um ataque são-paulino sob o olhar do zagueiro Arcanjo, enquanto Sabino se prepara para um eventual rebote; e Deleu e o árbitro Isidro Trapote Lopez observam a defesa tranquila de Suli. Fotos: Diário Popular.

A baixa tricolor foi o centroavante Pagão, que sofreu uma dura entrada do zagueiro Arcanjo, sendo substituído por Nondas. A princípio, sua contusão não parecia grave, e o médico Dalzell Freire Gaspar não achava que Pagão ficaria fora do jogo contra o Real, mas pouco depois ele estava sendo tratado como dúvida, antes de ser decretada a previsão de dez dias no estaleiro.

Pela vitória sobre o Porto, cada um dos jogadores recebeu um bicho de sessenta dólares. E Brandão, em conversa com a reportagem do Diário Popular, falou sobre o que esperava da excursão: “Este torneio serve para que alguns dos destacados valores do São Paulo venham a ganhar a necessária cancha internacional e também para que os desportistas de todo o mundo sintam que o futebol brasileiro possui várias equipes do mesmo prestígio e categoria técnica, em condições de brilhar em todos os sentidos. Perdendo ou ganhando do Real Madrid, que é uma grande equipe, o São Paulo saberá honrar sobremaneira o prestígio do futebol brasileiro.”

O confronto entre Real e Porto terminou com vitória dos espanhóis, também por 2 a 1, em uma boa exibição de Ferenc Puskás, do alto de seus 36 anos. “Aqueles que dizem ser [o Real Madrid] um quadro velho e superado viram Puskás manejar com tal habilidade a redonda, que sentiram de perto a grandiosidade de seu futebol”, escreveu o Diário. “Existem, no entanto, muitos outros, como [Francisco] Gento, [Antonio] Ruiz, Amancio e [José Emilio] Santamaría. Enfim, jogadores de tal quilate, que forçoso se torna dizer ser o Real um quadro veterano, mas com valores de capacidade extraordinária.”

E incentivado, pelo visto, pois sua diretoria tinha prometido um prêmio de quinhentos dólares para cada jogador em caso de vitória sobre o São Paulo, quase dez vezes mais que o adversário.

MMesmo diante do sequestro de di Stéfano, que estaria longe de ser o único problema de segurança durante o torneio, o Real Madrid entrou em campo normalmente para o jogo. O único desfalque tricolor era, mesmo, Pagão, por um motivo muito menos grave que o da ausência de di Stéfano. Brandão tinha dúvida entre Leal e Osvaldinho para o seu lugar, e acabou optando pelo primeiro. Talvez devido ao fato de ambas as equipes terem uniformes predominantemente brancos, o São Paulo entrou em campo com as camisas do La Salle, clube local que tinha terminado em quinto lugar no Campeonato Venezuelano daquela temporada.

O primeiro tempo terminou empatado: Faustino abrira o placar aos doze minutos, numa cobrança de falta que desviou na perna do meia francês Lucien Muller, que tentava afastar o perigo, e o brasileiro Evaristo de Macedo empatou para o Real oito minutos depois, com um chute de primeira depois de passe de Puskás. Durante o intervalo, mais um problema, quando torcedores chegaram a invadir o gramado, possivelmente fugindo de uma briga nas arquibancadas.

Até mesmo disparos foram ouvidos, e o lateral tricolor De Sordi contou assim o episódio: “Estudantes jogaram bombas e dispararam tiros contra os policiais que estavam no gramado, e eles revidaram com rajadas de metralhadoras. O tiroteio demorou, e nós trememos como vara verde, de pavor.” Pela maneira como o jornal espanhol Mundo Deportivo contou o episódio, parece ter havido algum exagero por parte de De Sordi: “O ruído de alguns disparos surgidos fora do Estádio Olímpico alarmou o público que presenciava o duelo, que invadiu o campo de jogo. Isso atrasou em meia hora o início do segundo tempo, o que não ocorreu até que os espectadores voltassem aos seus lugares.”

Duas defesas de Suli; na segunda, também se vê Bellini marcando Evaristo de Macedo. Fotos: Diário Popular.

Se o tumulto no intervalo afetou os são-paulinos, isso não transpareceu em suas ações, pois o time voltou bastante entusiasmado e tentando imprimir velocidade ao jogo. O Real incomodava graças aos passes de Puskás, mas o goleiro Suli não deixou os espanhóis marcar mais nenhum gol. Enquanto isso, do outro lado do campo, Nondas, que tinha acabado de entrar no lugar do paraguaio Cecilio Martínez, cobrou uma falta com violência e deu a vantagem novamente para o São Paulo, aos catorze minutos.

O Tricolor ainda perdeu uma grande chance com Sabino e chegou a mandar uma bola no travessão, e a partida seguiu equilibrada até o apito final, de acordo com o MD, ou com domínio são-paulino, de acordo com o Estadão e o Diário Popular, que vaticinou: “Não tivesse a retaguarda do conjunto ibérico apelado para o jogo violento, a fim de manter à distância o seu oponente, por certo o escore da noite teria sido ainda mais elevado. A pressão desenvolvida [pela] equipe brasileira no período complementar foi das mais intensas, mostrando o avante Nondas maior poder de penetração e fazendo a cidadela defendida pelo guardião espanhol correr risco dos mais acentuados.” O jornal também reclamou da atuação do árbitro Benito Jackson Ascanio, que teria “permitido o jogo violento por parte dos ibéricos”.

Reprodução Mundo Deportivo.

Como ambos os clubes tinham vencido o Porto por 2 a 1, os jornais brasileiros (foram consultados Diário da Noite, Diário Popular, O Esporte, O Estado de S. Paulo e Folha de S.Paulo) declararam o São Paulo como campeão da Pequena Taça do Mundo, embora o jornal espanhol Mundo Deportivo nada tenha mencionado naquele momento.

O Diário Popular chegou a mencionar que as duas diretorias tinham acertado uma revanche para dali a cinco dias (o que, de acordo com o MD, seria o jogo do segundo turno do torneio), mas o fato é que a delegação não parecia disposta a jogar novamente em Caracas, talvez por causa dos incidentes de segurança que tinham ocorrido até ali na capital venezuelana, talvez porque eles imaginavam que não havia um segundo turno. A delegação seguiu para Bogotá, na Colômbia, para um amistoso contra o Independiente Santa Fe, dois dias após o jogo contra o Real.

Segundo o empresário que tinha promovido a excursão, Alberto Yuri Bittar, seria apenas um turno, como explicou o jornal O Esporte, que tinha enviado um repórter para acompanhar o São Paulo, antes da primeira partida contra o Real: “Propalou-se aqui em Caracas que, em caso de uma vitória do São Paulo, no cotejo de amanhã à noite, haveria uma partida revanche entre o Tricolor e o Real. Abordado pela reportagem, o empresário Alberto Yuri Bittar, responsável pela participação do clube brasileiro na Pequena Taça do Mundo, salientou não ter o noticiário qualquer senso de verídico. Caso o São Paulo vença o jogo de amanhã, será proclamado o campeão do torneio, não sendo necessária nova partida com o clube espanhol.”

Os dirigentes do São Paulo pagaram uma gratificação pelo título aos jogadores depois do jogo, de cem dólares para cada um, quantia 67% maior do que a originalmente prevista. Afinal, em apenas oito dias seus jogadores tinham vencido dois dos três únicos clubes campeões mundiais até então: Santos e Real Madrid — o outro campeão mundial até ali, o Peñarol, tinha sido batido meses antes, em janeiro, em pleno Uruguai.

Faustino é carregado em triunfo por torcedores do La Salle, após a vitória sobre o Real Madrid. Foto: O Esporte.

Porém, apesar de o Mundo Deportivo ter tratado o torneio como uma competição em dois turnos, os jornais brasileiros consultados sempre trataram a Pequena Taça como uma competição em turno único, assim como a revista A Gazeta Esportiva Ilustrada. Mas o fato é que o Real Madrid jogaria duas vezes contra o Porto e tinha a intenção de jogar duas vezes contra o São Paulo.

Seguindo sua programação, os são-paulinos foram para Bogotá e perderam para o Independiente Santa Fe por 3 a 2, numa partida que ficou marcada pela péssima arbitragem, ao menos nos relatos publicados nos jornais brasileiros. “Árbitro e Santa Fe venceram o São Paulo”, deu O Esporte em sua manchete sobre o jogo. O Diário Popular também deu sua opinião, na coluna “Pingos nos ‘ii’”, assinada por Walter Lacerda: “Diante da narração fiel de Geraldo José de Almeida, robustecida pela palavra dos demais elementos que lá se encontram, é fora de dúvida que o Tricolor acabou, mesmo, sendo bastante prejudicado. Terrivelmente.”

Segundo os relatos, a falta de Bellini em Paulo, que valeu o pênalti que originou o primeiro gol, teria sido fora da área; Peraza teria feito falta no goleiro Suli ao marcar o terceiro gol colombiano; e Roberto Dias teria sido erroneamente expulso. “O médio são-paulino foi agredido por Peraza, e este é quem deveria ter sido expulso”, escreveu O Esporte. Curiosamente, o autor do gol de pênalti, Pimentel, pertencia ao São Paulo e estava jogando por empréstimo.

Os gols são-paulinos foram marcados por Cecílio Martinez, após lançamento de Riberto, e Sabino. Benê ainda perdeu a chance de empatar o jogo, ao chutar na trave após driblar o goleiro Lozano. Foi a primeira derrota são-paulina no exterior desde janeiro de 1961, interrompendo uma sequência de vinte jogos invicto fora do país e outra de doze vitórias.

Se o Tricolor não tinha a intenção de enfrentar novamente o Real, por que, após a derrota em Bogotá, a delegação voltou para Caracas? Possivelmente foi por pressão de Yuri Bittar, como sugere o Diário Popular: “Depois de muita confusão, provocando inclusive questões de ordem política, o Tricolor, que havia decidido não jogar novamente contra o clube espanhol, viu-se obrigado a realizar esse encontro, pois o empresário foi à Justiça para processar o clube dirigido por Laudo Natel, ameaçando não pagar as cotas prometidas e não permitindo que a delegação são-paulina voltasse ao Brasil sem cumprir o compromisso firmado.”

A declaração dada pelo presidente Laudo Natel, chefe da delegação, quando já estava de volta ao Brasil, também sugere a mesma pressão: “Com grande emoção e alegria regresso à minha terra, depois de passar por dissabores, de sofrer ameaças e de correr risco de morte em uma cidade tão bonita quanto perturbada em sua origem. […] Tenho a lamentar o procedimento do empresário Alberto Yuri, que contratou os quatro jogos do meu clube (dois em campos da Venezuela e dois em gramados da Colômbia), exigindo a segunda partida com o Real Madrid à força de ameaças de toda espécie, sem contudo cuidar de cumprir com o mínimo que nos prometeu: a reserva das passagens para a nossa viagem de volta, até 48 horas antes do jogo com o Real Madrid.”

Correu até um boato de que Oswaldo Brandão teria pedido demissão, por não concordar com a realização de um novo jogo contra o Real. “Não ocorreu nada disso”, diria o treinador, dias mais tarde. “O que houve foi um pronunciamento meu contrário à realização do segundo jogo com o Real Madrid, e o presidente Laudo Natel também discordava de tal partida, fundamentado no fato de os jogadores estarem exaustos. Diante, porém, das dificuldades que o presidente Laudo Natel encontrou ao tentar cancelar a realização do jogo, retirei minha objeção.”

Mas o fato é que o São Paulo voltou a Caracas. E teve problemas novamente.

NN o mesmo dia em que Canales prometeu a liberdade para di Stéfano, sua palavra foi cumprida: seu prisioneiro foi vendado novamente e colocado em um carro, que deu algumas voltas antes de soltá-lo. “Bem, agora somente queremos ter tanto êxito em nossa luta como a que você tem tido em sua vida futebolística”, disse Canales, antes de mudar o tom de voz. “Esta é nossa última ordem. Não tire a venda até que pare de ouvir o barulho do motor.” O astro do Real Madrid esperou alguns minutos e removeu a venda. Já não via os sequestradores. Parou um táxi e pediu ao motorista que o levasse à embaixada espanhola. Chegando lá, identificou-se ao porteiro e entrou . Seu sequestro tinha chegado ao fim — alguns detalhes de seu sequestro tiveram contornos mais dramáticos na biografia de di Stéfano, lançada em 2000; optei pela versão do depoimento dele reproduzida no Diário da Noite, cinco dias após ele ser libertado.

O São Paulo parece ter sido praticamente obrigado a jogar novamente contra os espanhóis: a CBD (Confederação Brasileira de Desportos, precursora da atual CBF) comunicou que autoridades venezuelanas tinham impedido que a delegação são-paulina deixasse o hotel onde estava em Caracas e confiscaram os passaportes dos integrantes. João Havelange, presidente da CBD, chegou a telefonar para o então ministro das Relações Exteriores, Araújo Castro, para pedir “que fossem dadas todas as garantias aos componentes da delegação do São Paulo”, segundo o Estadão.

Em entrevista a’O Esporte, Natel disparou: “Infelizmente, temos que lamentar profundamente o tratamento que nos foi dado pelo empresário Alberto Yuri Bittar. Jamais, quando deixamos o Brasil, poderíamos supor que iríamos ser tratados de forma irregular. Tudo foi arranjado para que não conseguíssemos o título na Pequena Taça do Mundo. Chegaram ao cúmulo de esconder os passaportes dos atletas, impedindo que fôssemos embora sem efetuar o jogo revanche com o Real, mesmo que pagássemos a multa estipulada por cláusula contratual. Houve também um tratamento distinto entre o Tricolor e o clube ibérico, fator preponderante de nossa mágoa e descontentamento contra o empresário.”

Enquanto isso, aqui no Brasil as notícias sobre o que estava acontecendo em Caracas eram poucas. O próprio diretor de Futebol são-paulino, Manoel Raymundo Paes de Almeida, só soube dar mais informações depois de receber uma ligação de Natel, que o informou que a segunda partida contra o Real iria acontecer, mas apenas “por circunstâncias alheias à sua vontade e aos interesses do seu clube”. Segundo Natel, o próprio presidente da Venezuela, Rómulo Betancourt, estaria fazendo esforços para que o voo dos são-paulinos de volta ao Brasil fosse o mais rápido possível, até para que a equipe tivesse tempo hábil para descansar antes do compromisso contra o Botafogo de Ribeirão Preto, pelo Campeonato Paulista.

Para o segundo jogo entre as duas potências, di Stéfano, já libertado por seus sequestradores, foi escalado, depois de insistir para tomar parte no jogo, “para corresponder à grande atenção demonstrada por venezuelanos e espanhóis durante suas 57 horas de cativeiro”, segundo o Mundo Deportivo — na verdade, tinham sido mais de 72 horas. Ele liderou seus companheiros ao entrar no gramado, sob muitos aplausos, recebidos novamente nas boas jogadas que fez e também quando foi substituído por Evaristo, no início do segundo tempo.

O início de jogo foi vertiginoso, com ambas as equipes procurando o ataque em velocidade. O Real pressionou um pouco mais no primeiro tempo, mas nenhum dos dois times conseguiu abrir o placar. As ações na segunda etapa foram dominadas pelos espanhóis, mas novamente o gol de Suli estava intransponível, graças também às atuações de Jurandir e Bellini. Ainda assim, o árbitro Isidoro Trapote Lopez, um espanhol radicado na Venezuela, encerrou a partida quando Benê partia em direção ao gol madridista, numa grande chance.

Reprodução O Estado de S. Paulo.

O empate sem gols garantiu o título do Tricolor e frustrou os madridistas, que lamentaram o resultado dos dois confrontos: “Não devíamos perder o primeiro jogo com o São Paulo e deveríamos ter ganho o segundo, apesar de que nós estamos começando a temporada, enquanto eles já se encontram em plena temporada”, disse o técnico Miguel Muñoz.

Já os são-paulinos viveram novos momentos de terror após o jogo, como recordou Jurandir: “No momento em que íamos tomar o ônibus para voltar ao hotel, vi quando um rapaz de camisa esporte branca jogou uma bomba sobre os policiais que estavam a poucos metros do nosso ônibus. Deitamos no chão, enquanto os policiais disparavam suas metralhadoras contra vários estudantes que se protegiam atrás das árvores. E ouvi, bem perto de mim, o ‘seo’ Brandão gritar: ‘Ai, minha perna!’. Quando olhei, pensando que ele estava ferido, vi que sobre a sua perna estava deitado o Nondas, trêmulo, pálido e com os olhos esbugalhados. Eu queria, mas não consegui rir.”

A diretoria já tinha avisado os jogadores antes da partida que eles dividiriam toda a cota de quatro mil dólares a que o clube teria direito pela segunda partida. E o jornal O Esporte frisou novamente: “À guisa de curiosidade, deve-se esclarecer que o resultado da partida de ontem não teve qualquer influência no que diz respeito à Pequena Taça do Mundo, conquistada pelo Tricolor. Não passou de um simples amistoso, e qualquer que tenha sido o seu resultado em nada modificará a situação dos concorrentes no torneio vencido pelo clube brasileiro.” Fica a dúvida do que ocorreria caso o Real Madrid tivesse vencido.

Natel, que também conversou com Manoel Raymundo por um rádio-amador depois do jogo, aproveitou para criticar a arbitragem das partidas no exterior: “Não obstante as péssimas arbitragens que encontramos em todos os jogos, principalmente na revanche contra o Real Madrid, oportunidade em que o mediador fez de tudo para tentar arranjar a vitória aos espanhóis, saímos invictos da Venezuela, certos de que o renome desportivo do Brasil foi condignamente representado.” Ele criticou especialmente a expulsão de Jurandir no último jogo: “Jamais, em minha longa carreira de desportista, vi uma medida tão injusta. Jurandir nada de mau fez para merecer a expulsão de campo. Mas a desonesta medida do juiz, ao invés de nos prejudicar somente, serviu para valorizar ainda mais o nosso feito, pois, mesmo atuando com um homem a menos, não permitimos que o Real vencesse. Nem o péssimo comportamento do empresário nem as condutas desonestas dos juízes conseguiram derrotar o São Paulo, que regressa vitorioso, com a cabeça erguida, cônscio de ter demonstrado a total superioridade do futebol brasileiro.”

Desembarque da delegação do São Paulo — e da Pequena Taça do Mundo — em Congonhas. Fotos: Diário da Noite.

A delegação tricolor embarcou de madrugada, pouco depois do jogo, em um voo da Aerolíneas Argentinas e seguiu para Trinidad e Tobago, onde pegou um avião da Varig. Esse avião vinha dos Estados Unidos, fez uma escala que não fazia parte de sua rota normal, a pedido do presidente João Goulart, de acordo com a Folha de S.Paulo, e seguiu para o Rio de Janeiro. Na manhã do dia 30, cerca de 36 horas após o apito final, os são-paulinos desembarcaram em Congonhas. Após o desembarque, eles foram para suas casas, mas já tiveram de seguir às 23 horas do mesmo dia ao Morumbi, para a concentração para o já citado jogo contra o Botafogo de Ribeirão Preto, dali a dois dias. A vitória tricolor por 2 a 1 permitiu que o clube se isolasse no segundo lugar do Paulistão, dois pontos perdidos atrás do Palmeiras, já que o Santos, até então empatado naquela colocação, perdeu para a Ferroviária, em Araraquara.

Financeiramente, a excursão valeu a pena, pois o São Paulo obteve catorze milhões de cruzeiros, valor que, segundo Natel, só seria igualado no Campeonato Paulista com uma renda bruta de 48 milhões de cruzeiros. Para efeito de comparação, a renda bruta do clássico contra o Santos, que tinha sido o recorde daquele Paulistão até ali, fora de pouco menos de vinte milhões de cruzeiros. E futebolisticamente? Com a palavra, Natel: “Magnificamente. São os jornais venezuelanos que dizem isso. Apesar da forte campanha que sofremos por parte de alguns juízes, conseguimos resistir.”

Reprodução Mundo Deportivo.

OO Real Madrid também chegou à sua casa no dia 30. Um grande público recebeu a delegação no Aeroporto de Barajas, e di Stéfano pôde, finalmente sorrir aliviado, em companhia de sua família. O presidente do clube, Santiago Bernabéu, também estava lá para receber seus jogadores e até brincou com jornalistas sobre a possibilidade de ter sido sequestrado caso tivesse participado da viagem: “Olha, já estou velho, estou doente, não tenho dinheiro…” Quando soube do sequestro, Bernabéu tinha pedido imediatamente para falar com Sara, esposa de seu jogador, por telefone. Mas a distância não serviu para que ele também não ficasse um pouco traumatizado com a situação: “Meus garotos [os jogadores] achavam que não poderiam sofrer mais, mas agora já sabem até o que é uma metralhadora.”

Nessa entrevista, ele também ironizou a recusa inicial do São Paulo em jogar a segunda partida: “Quando uma equipe teme perder para o Madrid, ela sempre se nega [a jogar]. Estamos acostumados. Então, veja você, eles ganharam de nós, e o troféu ficou com eles.”

Já di Stéfano prometia encerrar a carreira quando seu contrato vencesse, no fim do ano, de acordo com o jornal venezuelano El Nacional. Pelo menos nos trechos reproduzidos pelo Diário Popular, o motivo da aposentadoria parecia ser muito mais prosaico do que o sequestro que sofrera: “Passei vinte anos fazendo tudo quanto os demais queriam e esperavam de mim. Gosto de beber vinho puro; não posso. Gosto de fumar; não devo. Retiro-me, porém, a tempo para gozar a vida.” O craque, entretanto, ainda defenderia o Real até o ano seguinte e depois jogaria mais duas temporadas pelo Espanyol, de Barcelona, antes de pendurar as chuteiras de vez.

HHouve confusão até na cobertura da partida, embora seja totalmente trivial diante do que tinha ocorrido em Caracas. Mas vale citar, para mostrar como pesquisas históricas não são simples. Hoje pela manhã, postei um tuíte celebrando o aniversário de 55 anos da nossa primeira vitória sobre o Real Madrid. Algum tempo depois, o Michael Serra, historiador do São Paulo, procurou-me pelo WhatsApp, para avisar que pela planilha dele o jogo tinha ocorrido no dia 23, e não no dia 24. Fui investigar o que poderia ter acontecido, pois eu tinha o dia 24 na minha planilha.

Minha maior fonte sobre esse jogo era o jornal espanhol Mundo Deportivo, então voltei à minha pasta de “recortes” e consultei os jornais dos dias 24 e 25. Na edição do dia 24, o assunto foi tratado na reportagem “Gran expectación en Caracas para el Real Madrid–Sao Paulo valedero para la ‘Pequeña Copa del Mundo’”. A abertura da notícia trazia apenas “Caracas” como local de origem do texto, e não a data, como era praxe na época. Já na edição do dia 25, a matéria “El Real Madrid batido por 2 a 1 por el Sao Paulo en la Pequeña Copa del Mundo” começava assim:

Caracas, 24. — Con la victoria del Sao Paulo, por dos goles a uno, ha finalizado el encuentro de esta noche correspondiente a la serie internacional entre dicho equipo brasileño y el Real Madrid.

Da maneira como os textos era publicados na época, isso significava que a notícia tinha sido escrita no dia 24 e que o “esta noche” se referia ao mesmo dia 24 (senão, a expressão seria substituída por “anoche”, que significa “ontem à noite”).

Porém, se pensarmos na diferença de fuso horário entre Venezuela e Espanha (de cinco horas e meia naquele dia), seria muito difícil que um jornal matutino espanhol trouxesse o resultado de um jogo noturno em Caracas. Só que imaginei existir a possibilidade de o Mundo Deportivo ter uma edição vespertina, e aí tudo isso faria sentido, mas eu não tinha como saber se esse era o caso.

Então, decidi consultar o acervo do Estadão. E lá a charada foi resolvida. Na edição do dia 23, a matéria “S. Paulo e Real decidem título na Venezuela” falava do jogo, e sua abertura seguia o padrão que se deveria esperar:

Caracas, 22 (UPI) — São Paulo e Real Madrid decidirão amanhã à noite, no Estádio Olímpico da Cidade Universitária, o título do torneio internacional “Pequena Taça do Mundo”, que se disputa nesta capital.

Apesar de estar no jornal do dia 23, a abertura com “22” avisa que a notícia deve ser lida como se o leitor estivesse no dia anterior. Ou seja, quando fala em “amanhã à noite”, isso significa a noite do dia 23. Da mesma maneira, no dia 24 o Estadão, que sempre foi matutino, já trouxe o resultado do jogo, na matéria “O S. Paulo venceu a ‘Pequena Taça do Mundo’”:

Caracas, 24 — O São Paulo tornou-se campeão da “Pequena Taça do Mundo” ao vencer o Real Madrid, hoje, no Estádio Olímpico, desta cidade, por 2 a 1.

Mas note que, mesmo a matéria abrindo com “24”, o jogo é tratado como tendo ocorrido “hoje”, o que não poderia ter acontecido. E por que isso ocorreu? Difícil dizer se foi um simples erro ou se tinha ver com o fuso horário. Dependendo do horário local em que o jogo acabou, já podia ser dia 24 no Brasil, e a agência teria passado com esse horário, mas com o texto original, escrito ainda no dia 23. Que confusão!

Mas as confusões não pararam por aí. Como se pode ler pouco acima, o jornal paulistano deu em sua manchete que o São Paulo já tinha garantido o título do torneio amistoso, graças à vitória sobre os madridistas, na confusão já citada anteriormente, possivelmente causada pelo empresário. Todos os outros jornais paulistas consultados (Diário da Noite, Diário Popular, O Esporte e Folha de S.Paulo) traziam a mesma informação.

É possível que os dirigentes são-paulinos não soubessem de um eventual returno, talvez por culpa de Yuri Bittar, mas o Diário Popular informou, antes do primeiro jogo contra o Real, que “o empenho dos venezuelanos, depois da apresentação do São Paulo [contra o Porto], é o de fazer com que o Tricolor possa realizar mais dois encontros, contra Porto e Real”. No dia do segundo jogo contra o Real, o Estadão informou desta maneira:

O senhor Laudo Natel, presidente e chefe da delegação de futebol do São Paulo que se encontra em Caracas, telefonou ontem à noite ao senhor Manoel Raymundo Paes de Almeira, para informar que “circunstâncias alheias à sua vontade e aos interesses do seu clube” levaram-no a concordar com a realização de uma partida extraoficial com o Real Madrid, hoje à noite, na capital venezuelana.

No dia seguinte, ao tratar do jogo, insistiu: “O jogo teve a característica de desforra, uma vez que o São Paulo vencera o Real Madrid, por 2 a 1, na última sexta-feira, em partida disputada no mesmo local, quando obteve o título da ‘Pequena Taça do Mundo’.” Enquanto isso, o Mundo Deportivo, que nada tinha falado sobre título após o primeiro jogo, decretava: “Con el resultado conseguido, 0–0, el equipo brasileño logra el título.”

Bem antes de o torneio começar, quando contava apenas com informações de agências de notícias europeias, o Estadão publicara uma nota a respeito, da Agência France Presse (AFP), em que listava os quatro jogos que efetivamente se realizaram (dois entre Real Madrid e Porto, além dos confrontos únicos do São Paulo contra as duas equipes europeias) e destacava: “O troféu do torneio se decidirá entre o Real e o Porto, quadros que jogarão três partidas, ao passo que o quadro brasileiro jogará somente duas.”

A data do título não foi a única diferença de informações entre o Mundo Deportivo e os jornais daqui: o público presente ao estádio para a segunda partida também apresentou uma grande discrepância nas duas versões. Enquanto o Estadão falava em dezesseis mil pessoas, o MD falava em “mais de 35 mil aficionados que presenciaram a partida”. Realmente, pesquisar sobre excursões pelo exterior antes de a Internet se popularizar é muito difícil, ao menos sem fontes locais.

Um agradecimento especial ao Michael Serra, que ajudou na pesquisa e forneceu “recortes” dos jornais brasileiros que não têm acervo online.

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Autor de três livros sobre a história do São Paulo. Pai, filho, neto e bisneto de são-paulinos.