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Metamorfoses

Origem: Wikipédia, a enciclopédia livre.
 Nota: Para outros significados de Metamorfose, veja Metamorfose (desambiguação).
Metamorphoseon[1]
Metamorfoses

Coleção de Hayden White e Margaret Brose. Capa do Livro XV. Borda decorativa adicionada posteriormente, 1556.[2]
Autor(es) Ovídio
Idioma Latim
País Itália
Assunto Mitologia greco-romana.
Editora Diversas editoras. Ver Versões em língua portuguesa.
Lançamento 8 d.C.
Cronologia
Heroides
Fastos

Metamorfoses é uma das obras mais famosas e considerada como a magnum opus do poeta latino Ovídio.[3][4][5] Este poema narrativo foi tornado público por volta do ano 8,[6] e, ao lado de Fastos, trata-se talvez de um de seus poemas inconclusos[7][8] por conta do exílio que sofreu no Ponto Euxino, costa do Mar Negro, região distante de Roma.[9][10] É desconhecida a causa do exílio,[10] mas existem duas hipóteses: ou Augusto não tenha gostado do âmbito de sua obra desde A Arte de Amar, e as Metamorfoses de Ovídio, ao contrário do pensamento de ordem e estabilidade do imperador, mostram um mundo em constante mutação,[11] ou o poeta romano foi indiscreto a respeito de algum aspeto íntimo do soberano ou de sua família.[12]

A estrutura de Metamorfoses constitui-se de 15 livros escritos em hexâmetro dactílico com cerca de 250 narrativas em doze mil versos compostos em latim,[4] e que transcorrem poeticamente sobre a cosmologia e a história do mundo, confundido deliberadamente ficção e realidade, narrando a transfiguração dos homens e dos deuses mitológicos em animais, árvores, rios, pedras, representando o princípio dos tempos, chegando à apoteose de Júlio César e ao próprio tempo do poeta, ou seja, o Século de Augusto (43 a.C. - 14 d.C.).[13] Este ciclo histórico apresenta a mitologia como uma etapa no desenvolvimento do mundo e do homem:[14] Ovídio segue o conceito de Hesíodo e nos mostra as quatro idades cronológicas da mitologia clássica (conhecidas como a Idade do Ouro, a Idade de Prata, a Idade do Bronze, e a Idade do Ferro).[15] Aproveitando tal abordagem das Eras do Homem, Ovídio uniu livremente os deuses aos mortais em histórias de amor, incesto, ciúme, crime.

Contemporâneo de Horácio e Virgílio, Ovídio deu novo acabamento literário aos mitos gregos que haviam sido aproveitados pelo Império Romano quando esse conquistou a Grécia. Assim, poetas como Homero e Pausânias foram de fundamental importância para sua inspiração. Embora as personagens sejam mitológicas, o caráter de seus diálogos e contos são permeados por humanidade. Em Metamorfoses, ele desenvolveu e até popularizou os mitos mais famosos e mais lembrados da mitologia grega,[4] tais como o de Midas, Orfeu, Eros, Psiquê, Zeus, Afrodite, Baco, Narciso, entre outros. Outro aspecto apresentado em seu poema é o Caos, confusão de todos os elementos que se supõe ter precedido a criação do universo,[16] e que o poeta se refere em latim como rudis indigestaque moles ("massa informe e confusa").[17][18][19]

A Metamorfoses de Ovídio permanece até hoje como um dos trabalhos poéticos mais aclamados sobre mitologia,[20] e o poema mais influente da história da poesia e da arte[12] - poucas foram as obras poéticas que inspiraram tantas formas artísticas como a literatura, a música, a arquitetura, a pintura.[6] Seu caráter social e espiritual acerca dos ciclos históricos do homem influenciou também a filosofia, notavelmente o Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1989), de Jean-Jacques Rousseau.[21] Preservado pelo gosto da cultura ocidental através dos séculos, inspirou, entre outros autores, Dante, Shakespeare, Franz Kafka, Fernando Pessoa (Bernardo Soares), Cruz e Sousa, Manoel de Barros,[22][23][24][25][26] e pintores ou escultores tão diversos como Michelangelo, Rafael, Tiziano, Correggio, Veronese, Caravaggio, Rubens, Bernini, Velásquez, Rembrant, Delacroix, entre tantos outros.[27] Figura, portanto, como uma das mais importantes obras clássicas da mitologia greco-romana e da literatura latina.[20]

Nascido em Sulmona, Itália[12] Ovídio cresceu dentro de uma rica família que lhe proporcionou uma notável educação em Roma e em Atenas.[28] Seu pai o instruía com o objetivo de levá-lo à carreira pública romana, à advocacia, e para isso se esforçou com que Ovídio e seu irmão mais velho aprendessem retórica, contudo o primeiro dos dois preferiu arriscar-se na poesia.[12] Tudo indica que a profissão já era difícil na época.[12]

O poeta Romano Ovídio com uma coroa de louros na cabeça.

Quando o Império Romano conquista a Grécia, e sua mitologia se funde com a mitologia dos gregos, surgem tendências sincronatórias que obrigam os romanos a escolherem personagens de seu panteão precário para que se unam a seus equivalentes na tradição grega.[29] Ocorre que os gregos encaravam sua mitologia como religião,[30] enquanto que muitos romanos mantinham-se na defensiva quanto a isso, como Cícero.[31] Os poemas ovidianos - tidos como líricos, libertinos e irônicos[10] - principalmente a Metamorfoses, por seu caráter mítico, pertence à era romana e ao helenismo, e, ao lado dos poemas de Sêneca e Virgílio, constitui-se mais como um exercício literário do que uma prática ritualística aos deuses, como assim fazia Homero em sua Odisseia.[32] Depois do cristianismo, unificou-se a mitologia dos dois povos, fazendo com que "greco-romanos" fosse adjetivo, no plural, para tudo aquilo que fosse comum aos gregos e aos romanos,[33] mas o fato é que os críticos observam na cultura latina um mimetismo acentuado em relação à cultura da Grécia antiga.[34] Mitos como o de Narciso, por exemplo, já eram conhecidos por Pausânias e talvez por Estrabão,[35] o que forçou Ovídio a recorrer a esses e outros poetas para compor sua Metamorfoses.

Acredita-se que Ovídio tenha tido uma inimitável facilidade de metrificar,[36] e que Metamorfoses, sua mais famosa obra, tenha sido estimada por ele mesmo como sua obra-prima,[37] como a produção pela qual o poeta se tornaria imortal.[38] É tido como o poeta romano que soube, ao lado de outros, imprimir em versos o tom, a cor e os sonhos da jovialidade, da alegria (ainda em Metamorfoses), e também da dor que experimentou depois do exílio.[39] Sua obra é dividida pelos acadêmicos em três grupos: "poemas de amor" (Amores, Heroides, Ars Amatoria, e Remedia Amoris), "poemas eruditos" (Metamorfoses e Fastos), e "poemas do exílio" (Tristia, Epistulae ex Ponto, Íbis e Haliêutica).[39] Metamorfoses figura, ao lado de Fastos, como uma produção de sua fase madura, momento no qual sua veia poética encontrava-se no auge.[39]

Fontes e modelos

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Além das fontes já detalhadas, as Metamorfoses inspiram-se também nos poetas alexandrinos, como Calímaco e Virgílio.[39] Nota-se uma rede de correspondências com obras anteriores a Ovídio, segundo um princípio chamado imitatio. Conforme Tronchet, "o autor de Metamorfoses tira muitas ideias de temática comum da poesia que surpreendem tanto a prática de imitatio que era familiar aos antigos escritores."[40] Em Metamorfoses, deuses misturam-se livremente com os mortais (ver subseção Metamorfoses#Contos de amor e contos de castigo). Tal tradição também deriva do Período Alexandrino, onde o deus "perde sua dimensão primordial para se tornar o promotor de aventuras perversas e galantes entre os mortais".[41]

Quanto à utilização de metamorfoses, já nos poemas homéricos surgiam a transmutação de seres: a Ilíada descreve certas mutações de deuses, e a Odisseia narra a transfiguração dos companheiros de Ulisses em porcos por Circe no Canto XI do poema.[42] Os autores helenísticos também escreviam sobre metamorfoses: o poema de Beo sobre metamorfoses em pássaros e os catasterismos de Eratóstenes sobre transformações em astro também serviram de fontes para Ovídio.[42] Os Heteroeumena, de Nicandro, coleção que explica todo tipo de metamorfoses e os acontecimentos que tinham levado a transformação, eram famosos na Roma antiga da época, e muito provavelmente foi lido pelo poeta latino.[43] Partênio de Niceia e Emílio Macro, amigo de Ovídio, escreveram algumas metamorfoses em suas obras, de onde Ovídio deve ter recolhido muitas histórias.[44] Por fim, Ovídio inspira-se também em Os trabalhos e os dias, de Hesíodo, para narrar as Idades do Homem, e no já citado Calímaco para elaborar episódios num modelo de concatenação.[42]

Inter e intratextualidade

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Mirra e o Nascimento de Adônis. Desenho de Bernard Picart para a Metamorfose, Livro X, 476-519.

A identificação das possíveis fontes ovidianas é importante para que se possa fazer comparações com as diferenças entre as versões dos mitos descobertos e referentes. O mito de Mirra, por exemplo, presente em Metamorfoses no Livro X (e também mencionado no Remedia Amoris[45]), talvez tenha sido muito popular por conta da diversidade de fontes sobre sua história.[46] Em torno do ano 140 a.C., a Biblioteké de Pseudo-Apolodoro cita[47] que um desconhecido Paníase, poeta épico do século V a.C., já a teria contado.[48] Os versos 828-830 da obra Alexandra, atribuída a Licofronte (c. 320 a.C.), narra que Adônis teria nascido da árvore de mirra. Uma versão do mito contada por Antonino Liberal já era atribuída ao poeta grego do início do século V a.C. Ferecides de Leros.[49] Embora a existência dessas e de outras versões transmitidas, os estudiosos notam aspectos particulares na versão de Ovídio: apenas ele associou a genealogia de Mirra à de Pigmalião.[50]

O mito de Hipólito, presente em Metamorfoses no Livro X, também é um elemento no estudo da intertextualidade: o personagem teria sido aludido, à primeira vista de forma metonímia, numa competição entre Diana e Vênus: "Ou então, cultiva o gosto pela caça, com frequência Vênus bate em retirada, vergonhosamente vencida pela irmã de Febo".[51] Aqui tem-se a dúvida se Ovídio usou ambas as deusas como identificação daquilo que representam (caça e amor, respectivamente), sintetizando-as na personificação, ou se o trecho trata-se de uma alusão a algum episódio mitológico com que o poeta romano reforça sua argumentação de caça x amor.[52] Identifica-se que na história de Hipólito, ocorre tal combate: o filho de Teseu, jovem casto, amante da caça e da solidão, é atingido pela ira da deusa do amor, porque, ignorando seu culto, acaba homenageando exclusivamente Diana, a deusa da caça (assim, Vênus vinga-se inflamando em Fedra, sua madrasta, o amor por Hipólito), e Fedra, vendo-se rejeitada, acusa o jovem de tê-la violentado e faz com que Teseu provoque a morte do próprio filho.[53] Tal conto mítico foi apresentado antes de Ovídio, na tragédia Hipólito de Eurípedes como mais tarde em Fedra, de Sêneca.[53] Nessa primeira obra, estudiosos notam grandes semelhanças entre a ama de Mirra na Metamorfose de Ovídio e a ama de Fedra na tragédia de Eurípedes.[54][55][56][57] Portanto, o duelo "caça x amor" é considerado uma revivificação mitológica utilizada por Ovídio como uma advertência ao mortal comum (algo como: "ocupe-se da caça para esquecer uma desventura amorosa").[53]

A Metamorfoses de Ovídio poderia ser chamada de "enciclopédia da mitologia clássica"[58] - narra os acontecimentos míticos dos personagens mais importantes e utilizados na mitologia grega e as transformações que dão nome ao livro: homens transformam-se em rios, em flores, rochas, ninfas que são transformadas em sons, deuses que se transformam em pássaros. Ovídio produz uma estratégia narrativa que "desenha" uma imagem global de um canto sem interrupção acerca das origens do mundo até seu tempo.[59] O sentimento que correlaciona tal cronologia e metamorfoses é aquele que Ovídio sempre escolheu para permear sua poesia, ao menos antes do exílio: o amor, quer por seu excesso, quer por seu fim, quer pelo medo que provoca. O amor é apresentado ao lado de suas consequências; pode resultar em ciúmes, que cria monstros, ou pode resultar em mais amores, produzindo pássaros e flores. No poema, o amor transforma os brutos e insensíveis em seres de natureza pura, e sua perda enlouquece os bons.

Ticiano, Danaë, 1553-1554, uma das muitas pinturas presentes nesse artigo inspiradas na Metamorfoses.

O amor em Metamorfose se alastra por todos os gêneros: encontramos escapadelas amorosas, amores impossíveis, incestuosos, não-consentidos, amor de irmão, amor entre parentes, amor homoerótico. Além de sua aparência leve de conto de fadas, Metamorfoses apresenta uma história demasiada fragmentada e aparentemente incoerente, mas que nos mostra centenas de lendas que inspiram, que são grotescas, e às vezes subversivas.[11] A narração, dessa forma, explode em uma multiplicidade de episódios mitológicos, salientando a fluidez do mundo das metamorfoses e constituindo um universo que apaga as fronteiras porosas entre o humano e o divino, para sempre interligados.[11]

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Piero Pollaiuolo, Apolo e Dafne, século XV: Dafne se metamorfoseia em árvore para fugir do deus do sol.[61]

O conceito de metamorfose (verbo μεταμορφόω), um dos temas-chave da mitologia greco-romana,[61] consiste, no poema ovidiano, em notar um movimento permanente movido por paixões e desejos que se equilibram antes de iniciar uma nova batalha.[62] Tal concepção chama-se dialética - "não existe a supressão do desejo, ao contrário, é o mais puro e límpido fulgurar de sentimentos, ódios, paixões e desejos que move esse mundo mítico."[62] De fato, notamos em Metamorfoses um movimento que nos leva a muitos saltos e incoerências de episódios que passam a registrar em nossa mente uma variedade de histórias individuais.[63]

Em Metamorfoses, os deuses transformam os homens para que possam provar sua superioridade diante dos mortais ou si mesmos para que possam realizar seus desejos e sonhos.[64] Há as mais variadas descrições de transformação no poema ovidiano: em mamíferos (Io), aves (Filomela), plantas (Dafne, Jacinto, Adônis, Narciso), pedras (Alcmena), divinização (Hércules).[61] Há personagens que mudam de sexo, como é o caso do adivinho Tirésias (Livro III), que, enquanto escalava uma montanha, viu duas serpentes e matou a fêmea, transformando-se em mulher (anos depois, passando pelo mesmo local, avistou outras duas serpentes e, em vez de matar a fêmea, eliminou o macho, e recuperou a masculinidade).[65][66] Em muitos casos, como nos mitos de Astéria, Adônis ou Narciso, a metamorfose ocorre como fruto de um sofrimento amoroso e trágico.[67] Contudo, a noção geral de metamorfose é que esses seres, embora transmigrem para outras formas ou gêneros, sempre guardam algum sinal de seu estado pretérito.[68] Para Italo Calvino, "uma lei de máxima economia domina esse poema [Metamorfoses] aparentemente voltado para o dispêndio desenfreado: é a economia própria das metamorfoses, que pretende que as novas formas recuperem tanto quanto possível os mateiais das velhas."[69]

Apolônio de Rodes, Eratóstenes, Nicandro, Pseudo-Apolodoro, Antonino Liberal, Boios e, claro, Ovídio, pertencentes ao Período Helenístico, são os principais autores que descrevem relatos de metamorfoses, enquanto que em Homero, Hesíodo e Píndaro tais descrições são mais raras.[61] Com avançados estudos antropológicos do século XIX, o fenômeno de metamorfose foi tido como uma característica de um estágio primitivo da religião grega, ou, sob outra ótica, como a existência de uma história folclórica prévia ou apenas invenção literária.[61] Para Irving, a metamorfose é "um importante elemento narrativo que, além de ilustrar as mudanças de categoria exigidas pela narrativa mítica, evoca respostas imaginativas, emocionais e torna a história excitante, tocante ou divertida."[70] O fenômeno de se transformar em uma nova forma ou espécie pode ser encarada como uma modificação de consciência, todavia os estudiosos notam que é em Ovídio que a metamorfose adquire o caráter mágico que hoje possui.[71]

Cosmogonia e Eras do Homem

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Caos, desenho de W. Goeree, 1690. Versos 5-20 da Metamorfoses descrevem a Gênese como uma confusão de elementos desarmônicos.[18]

Quando Ovídio narra as origens do universo, o poeta mostra lucidez pelo fato de reter uma gama de versões acerca do mito de cosmologia e por propor uma reflexão acerca das relações conflituosas que podem entreter as diferentes doutrinas.[72] Para traçar a criação do mundo em Metamorfoses, Ovídio dispôs basicamente de duas obras fundamentais: Teogonia, de Hesíodo, que apresentou-lhe uma evolução derivada de nascimentos divinos;[73] e o livro V do De rerum natura, de Lucrécio, que apresentou-lhe uma filosofia epicurista que descreve a formação da Terra e dos astro, o surgimento dos homens e a formação da civilização.[73] A partir do verso 7 do Livro I, observa-se claramente a influência de Hesíodo, uma vez que Ovídio projeta nele (no verso) a noção de caos - que designa a inicial confusão de todos os elementos universais.[74] No poema ovidiano, o caos estabelece um estado primitivo do universo, mas, ao contrário da Teogonia, não nos apresenta uma sequência passo a passo de uma relação de ocorrências ordenadas segundo um princípio arbitrário.[74]

Lucas Cranach, o Velho, Era de Prata, século XVI. Museu Nacional, Alemanha.

Ovídio também utiliza quatro idades das cinco eras cronológicas da mitologia clássica: Idade do Ouro, a Idade de Prata, a Idade do Bronze, e a Idade do Ferro. Tais idades são seguidas da luta entre os Gigantes e os Deuses olímpicos. Para os estudiosos, a Idade de Ouro ovidiana é encarada como uma "estratégia narrativa de contar o mito em uma esfera de metamorfose, e não de alusão política".[75] De acordo com a poesia de Virgílio, durante o domínio de Saturno, contentavam-se os homens com o que a terra lhes fornecia.[76] Por conta dessa espera e desse dependência da terra, ainda em Virgílio, as habilidades humanas não foram aperfeiçoadas, de modo que só futuramente, já no reinado de Júpiter, tais habilidades começaram a ser aguçadas por conta das dificuldades existentes na natureza.[76] Nas Metamorfoses, a Idade de Ouro não possui tal repressão: cultivava-se a lealdade e a justiça por seu próprio arbítrio, sem lei.[76][77] Há uma brusca passagem da Idade de Ouro para a Idade de Ferro, "como se as etapas intermediárias corressem para se entrar na idade derradeira."[76] Hesíodo apresentava uma Idade a mais, a Idade Heroica, que Ovídio opta por suprimir.

Para Tronchet, é significativo o fato de Ovídio ter reduzido a quatro o número das idades: "pode-se observar uma correspondência entre a passagem referida e todo o começo das Metamorfoses, no qual intervêm os pontos cardinais, ligados aos ventos principais, às estações do ano, introduzidas na Idade de Prata".[78] Os estudiosos acreditam que o suprimento da Era Heroica resultou numa temporalidade homogênea em Metamorfoses, de modo que a sucessão das etapas obedece a uma estrita orientação axiológica, que racionaliza o episódio ao lhe dar uma estrutura unívoca.[79] A última idade, a Idade do Ferro, é descrita assim por Ovídio: de duro est ultima ferro[80] Nessa Idade não há mais piedade, e até mesmo Astreia, deusa da justiça, deixou a terra.[81] Assim, nota-se o declínio da moralidade e do surgimento de homens perversos, desejosos de cruéis matanças.[81] Em Hesíodo, tais comportamentos se prolongam até o presente, o que não ocorre em Ovídio, onde a Era do Ferro é localizada num passado longíquo, embora mantenha conexões com práticas criminosas da atualidade.[82] Assim, "o mito das quatro idades representa o cenário no qual evoluem os homens e no qual deuses produzem metamorfoses como desvios que transgridem tanto as formas gerais da natureza quanto as leis que a regem".[82]

Criação do homem e da mulher

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Gustave Moreau, Prometeu, 1868: o homem, embora rivalize com os deuses, deseja fazer parte do divino, e para isso modela o primeiro homem à imagem divina.[83]

No helenismo, o mito de Prometeu foi retratado em quatro trabalhos: Protágoras, de Platão; Prometeu, de Ésquilo; Teogonia, e Os Trabalhos e os Dias, ambos de Hesíodo.[84] Segundo algumas dessas versões, Prometeu, um urânide, criou do barro e da água o primeiro homem e, como havia roubado o fogo dos deuses para incuti-lo em sua invenção, foi-lhe enviada pelos deuses a primeira e belíssima mulher, Pandora, trazendo a ele grandes males.[85] Criando o homem à imagem divina, Prometeu contempla o divino e termina se tornando parte dele,[83] de modo que, oposto a Os Trabalhos e os Dias, cuja finalidade é mostrar a necessidade de trabalho e justiça,[86] Ovídio declara que, possuindo porte ereto, "o homem, ao contrário dos animais que voltam suas faces para o solo, levanta os olhos para os céus".[87] Para Ovídio, o homem é o animal mais sagrado - faltava-lhe apenas dominar os outros por meio de uma mente superior.[88][89] Assim Ovídio escreve sobre a criação do homem, iniciando por "Nasceu o homem":

"Nasceu então o homem. Este, ou o fez de semente divina
aquele artífice do universo, a origem do mundo melhor;
ou então a terra recente, separada há pouco do alto éter,
talvez ainda contivesse sementes do céu, seu parente, terra
que o filho de Jápeto, misturando com água da chuva,
moldou à imagem dos deuses que governam tudo."[90] - Met. I, v.78-83
Jules Joseph Lefebvre, Pandora, 1882: "a mulher é o castigo descido do céu para que os homens esqueçam do espírito e sejam seduzidos pelo banal".[91]

O homem torna-se aquele que surge para rivalizar com os deuses em suas habilidades e meios, embora não adquira bons frutos em sua batalha.[89] Para que preservassem o esforço e o cansaço do trabalho, os deuses retiveram o fogo, "vital aos homens". Acontece que Prometeu o roubou e tal ato fez com que Zeus, irado, jogasse uma praga, que foi pedir a seu filho Hefesto que modelasse Pandora, mulher ideal e semelhante às outras deusas.[92] A mulher criada pelos deuses é o castigo que eles usam para se vingar dos homens: Pandora simboliza os "desejos terrestres que levam o homem, esquecido do espírito, à sedução banal".[93] Na tradição judaico-cristã existia a crença de que a entidade femnina impulsiona o homem para a transgressão dos limites humanos, enquanto que na narrativa de Hebreus, Eva dava ao homem a tomada de consciência.[94] Pandora traz consigo um jarro que, segundo Diel, "é símbolo do subconsciente, pois encerra todas as formas de perversão, auxiliado pela consciência cega de Epimeteu."[95] Pandora e Epimeteu se casam e, nas núpcias, o jarro é aberto e saem dele todos os males que são espalhados pela humanidade (alguns enxergam uma relação análoga entre os noivos e Adão e Eva).[93] A consequência seria a "perda do paraíso" ou, segundo o psicólogo clínico Sérgio Pereira Alves, "neste clima de tensões, paradoxos e incertezas confrontamos a nós mesmos na busca pelo equilíbrio".[94] No fim, há uma reconcilização entre Zeus e Prometeu, o rapto do fogo acaba por ser esquecido, e o instrumento torna-se chama purificadora. De maneira simbólica, Prometeu ocupa seu lugar entre as divindades, quando se arrepende do roubo.[93] O mito de Prometeu e Pandora retrata a marcha história do homem e da mulher, e representa a "esperança de se elevar a um caminho mais puro: ao sublime, ao divino".[93] Para Diel, "Prometeu é o símbolo da humanidade, ao representar o caminho que conduz da inocência animal (inconsciente), intelectualização (consciente) e do perigo de seu desvio (subconsciente), até a eclosão da vida mais elevada (supraconsciência): o Olimpo."[96]

Delacroix, O Verão - Diana Surpreendida por Acteão, 1856-1863. Museu de Arte de São Paulo.

A vingança encontra-se de forma recorrente em Metamorfoses; geralmente ela explica a causa das transformações ao longo da história.[64] Os deuses vingam-se dos homens transformando-os em animais ou plantas para que possam provar sua superioridade diante dos mortais. Assim, a vingança traz transformação, metamorfose, na medida em que os humanos são transformados em monstros, constelações, peixes, fazendo com que as instâncias de vingança em Metamorfoses seja muito importante por desempenhar um papel fundamental no que diz sua história.[64] Assim, o primeiro exemplo de vingança é encontrado no Livro I, quando Júpiter transforma Licaão em lobo por conta da tentativa de homicídio que o segundo dos dois quis cometer no primeiro, sem saber que ele era um deus.[64] O nome de Licaão ficou associado com licantropia.

Outros exemplos de vingança: quando Mercúrio rouba o gado de Febo, e a única pessoa que havia visto o crime era um homem chamado Bato, o ladrão subordina o homem com uma das vacas para que ele não revele o que havia visto, mas ele não cumpre a promessa, e Mercúrio transforma-o numa pedra; por Aglauros ter quebrado sua promessa à deusa Minerva, esta enviou Inveja a fim de envenená-la, fazendo com que Mercúrio, por fim, transformasse ela numa pedra porque ela não o deixou entrar na sala de Herse; quando Acteão havia terminado uma longa caça com seus cães por dentro de um bosque, ele entrou numa clareira onde havia um lago, e lá estava Diana, nua, que, não sabendo que o encontro era mero acidente, o puniu transformando-o num cervo, ação pela qual fez com que os cães de caça o perseguissem sem reconhecê-lo; a deusa Minerva veio sob o disfarce de uma velha mulher e desafiou a jovem tecelã Aracne numa competição para ver quem tecia melhor e, notando que as mãos de Aracne produziam um material mais perfeito que o seu, a deusa fez com que a jovem se enforcasse, e, por fim, Juno suburnou a deusa do parte para evitar que Alcmena entregasse seu bebê, Hércules, pois Juno tinha ciúmes pelo fato de Júpiter ser o pai do bebê, e ela quis tornar isso o mais difícil possível para Alcmena, de modo que a deusa cruzou as pernas e impediu a entrega da criança, mas Galante, servo de Alcmena, conseguiu enganar a deusa e ela acabou entregando a criança com segurança, enquanto a deusa do nascimento transformou Galante em uma doninha.[64]

Amor erótico, conceitual, e sexo

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semper eris mecum memorique haerebis in ore[97]
- Ov. Met., X 204.
Jean Broc, A Morte de Jacinto, 1801. Pintura que mostra o momento da morte do jovem amado por Apolo, de forma sutil e delicada, uma bela demonstração de homoerotismo artístico.

O recorrente tema do amor, fortíssimo em toda produção literária de Ovídio,[98] é apresentado em Metamorfoses de forma pessoal ou personificado na figura do Cupido. Ovídio reverencia Cupido por ser o deus do amor para os romanos, contudo o repudia porque ele traz muitos problemas aos homens, tirando-os da razão.[99] O amor em Metamorfoses abrange desde paixões até erotismo, temas que serão de nosso foco exclusivo nessa seção. Em questão erótica, o Livro X nos apresenta o mito de Jacinto, um dos muitos amantes do deus Febo. Jacinto tinha uma beleza rara que se desfez quando ele e Febo brincavam num enorme campo e um disco arremessado pelo segundo dos dois acabou sendo desviado pelo ciumento Zéfiro, o vento, que também amava Jacinto.[100] O disco fere Jacinto, e Febo lhe segura nos braços; utiliza-se de todas suas artes,[101] mas os esforços resultam nulos, e Jacinto morre. Contudo, ele renasce em outra forma: a metamorfose de Jacinto se dá quando Febo faz brotar do sangue de seu amor, espalhado na relva, uma flor brilhante e purpúrea, o Jacinto, em homenagem ao jovem.[100] Febo e Jacinto são um exemplo do desejo homoerótico na Antiguidade Clássica e helenística que, embora ainda não recebesse esse nome, estava presente em manifestações artísticas da Grécia antiga como a pintura vermelha em cerâmica.[102] Bernard Sergent, aluno de Georges Dumézil, considera que é um mito iniciátivo, acerca da fundação da homossexualidade institucional espartana: Febo ensina Jacinto a se tornar um adulto realizado, lhe ensinando atividades do cartório, arco, música, lírica.[103] O mito de Febo e Jacinto é considerado uma metáfora clássica da morte e do renascimento da natureza.[103]

Cornelis van Haarlem, Vênus e Adônis, 1614: um mito que exemplifica quando um indivíduo põe suas vontades na frente dos desejos de sua/seu parceira(o).[104]

O conceito de amor em Metamorfoses varia de personagem para personagem: encontramos deuses que procuraram desesperadamente uma mulher especial que se recusa a ceder até ele tê-la, enquanto que em outros casos uma deusa se preocupa profundamente com um homem e faz de tudo para protegê-lo dos perigos.[104] Para os estudiosos, na medida em que retrata homens e mulheres como seres individuais que não possuem muita vontade de se juntar com o sexo oposto, Metamorfoses ridiculariza o conceito de união e harmonia entre os sexos.[104] Em muitos cantos Cupido impele deuses ou deusas a perseguirem algumas personagens femininas, ou masculinas, mas essas personagens femininas ou masculinas fogem para que possam prosseguir com seus desejos individuais. Por exemplo, quando Vênus se apaixona por Adônis e se estabelece com ele, no Livro X, a deusa faz de tudo para protegê-lo dos animais selvagens, mas ele não atende suas advertências e vai caçar um javali. (Esse javali acaba matando o homem que ela tanto cobiçou.) Trata-se de mais um exemplo acerca do indivíduo que põe suas vontades na frente dos desejos comuns de um casal.[104] Para os estudiosos, na mente de Ovídio não é natural duas pessoas do sexo oposto viverem em harmonia.[104]

Quando alguém se apaixona em Metamorfoses, tudo na pessoa amada é belo e encantador. Para Chen, "os marcadores de um relacionamento amoroso inclui o inicial amor à primeira vista, geralmente seguido por uma elegia pessoal das qualidades do amado."[105] Isso ocorre, por exemplo, nos elogios que Apolo faz a Dafne, no Livro I. Em Metamorfoses, a diferença entre amor e luxúria é que os personagens que amam enxergam a pessoa amada como bela física e interiormente, enquanto que os luxuriosos a enxergam apenas como mero objeto sexual.[106] Por exemplo, no mito de Io e Júpiter, no Livro I, o deus nunca comenta sobre a beleza da jovem, apenas diz que ela faria um macho feliz na cama.[105] Para Chen, "outro atributo que define, entre muitos protagonistas do amor em Ovídio, é a perda do controle racional, como característica de uma pessoa no ápice do amor."[106] Essa marca se encontra ainda no mito de Dafne e Apolo, quando ela foge dele, e ele pede para que ela encurta os passos a fim de não se machucar: ele diz que também desacelerará para que ela não precisa correr mais rápido, mas quando ela não o faz, ele acelera.[105] No final, notamos que o amor de Apolo é tão intenso e doentio que, quando Dafne está tentando fugir dele, o deus não entende que é porque ela não o ama. Chen observa tal irracionalidade no pensamento "como uma forma de liderar a defesa especial, a inconsistência na negociação e, finalmente, a frustração por não ter convencido a pessoa adorada."[106]

Contos de amor e contos de castigo

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Metamorfoses inverte a ordem aceita, elevando as paixões humanas (pathos) enquanto modela os deuses e seus desejos e conquista elementos de baixo humor. Não existe barreira entre os humanos e os deuses. Unindo a Era em que os deuses viviam sós e a Era em que a interferência divina nos assuntos humanos era de certa forma limitada, havia uma Era de transição em que deuses e homens se misturaram livremente, ocorrência relatada fundamentalmente na Metamorfoses de Ovídio: as histórias dessa Era são divididas pelos acadêmicos em dois grupos temáticos, histórias de amor e histórias de castigo.[107] Ambas histórias tratam do envolvimento dos deuses com os humanos, seja de uma forma ou de outra: os contos de amor, que muitas vezes envolvem incesto, sedução ou violação de uma mulher mortal por parte de um deus, resultando em uma descendência histórica (como Enéas, apresentado no Livro XIII, e que é fruto do relacionamento da deusa Vênus com o mortal Anquises, um príncipe),[108] raramente possuem finais felizes;[109] os contos de castigo envolvem a apropriação ou invenção de algum artefato cultural importante no envolvimento entre deuses e humanos.[110]

Interpretações

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Narciso (1594-1596) de Caravaggio: o belo jovem tornou-se o protagonista do "Eu" na cultura ocidental.[112][113]

Desde seus princípios a psicanálise utiliza-se dos textos artísticos e literários como uma atividade de análise, estimulada por Sigmund Freud.[114] Segundo Freud, seria impossível compreender uma obra de arte sem antes aplicar-lhe a psicanálise, sem antes interpretá-la, descobrir-lhe o significado e o conteúdo.[115] Na psicanálise, a mitologia grega serve como uma espécie de investigação da psique.[116] O Narciso de Ovídio - apresentado no Livro III da Metamorfoses - foi aproveitado por Freud[117] para que ele desenvolvesse a teoria do "narcisismo", que caracteriza uma etapa primitiva no desenvolvimento da criança.[118] O termo surgiu primeiramente em 1910, quando Freud abordou-o focando-se na perspectiva da escolha objetal dos homossexuais, onde, segundo ele, "a escolha do objeto libidinal parte do narcisismo, na busca pelo semelhante".[119] Freud publicou um estudo mais aprofundado do termo em seu Sobre o Narcisismo: Uma Introdução (1914).

Quando ocorre uma atitude psicológica semelhante à de Narciso-que se deixou morrer admirando sua própria imagem e evidenciando uma paixão por si-existe a famosa relação entre "narcisismo" e "vaidade".[120] Flávio Gikovate escreveu em seu Ensaios Sobre o Amor e a Solidão (1998) que "[...] a vaidade corresponde a um prazer erótico (Eros) difuso determinado pela exibição bem sucedida de alguma prenda pessoal."[121] Para a psicanálise voltada à psicologia infantil, quando uma criança é elogiada por conta de sua beleza, ela "experimenta intenso prazer e passa a buscar a repetição da sensação, fato que a leva a se posicionar diante do Outro com a finalidade de ser admirada."[122] Acredita-se que, no futuro, tais crianças possam viver exclusivamente do elogio dos outros e ficarem desconectadas de si mesmas.[122]

Alguns estudiosos, contudo, enxergam um lado positivo no narcisismo: "um narcisismo que promove a constituição de uma imagem de si unificada, perfeita, cumprida e inteira ultrapassa o auto-erotismo para fornecer a integração de uma figura positiva e diferenciada do outro.[123] Mas em Ovídio, existe uma segunda personagem ao lado de Narciso: Eco. Os psicanalistas a enxergam como um símbolo da alteridade, "constante tentativa do espírito humano para entregar-se a outrem".[124] Em Ovídio, Eco se distraía pelos bosques e montes, tentou aproximar-se de Narciso, que também a desprezou, e era fadada a eternamente reproduzir (ecoar) a fala do amado.[125] A operação formada pelo encontro de Narciso com Eco é vista como "algo que permanece para sempre passível de ser o causador de uma re-significação".[112] Na perspectiva do psicanalista Henrique Figueiredo Carneiro, "o sujeito do contemporâneo, viajando nas asas do velho Narciso, se depara com seu ponto de finitude, seu ponto de apoio estrutural que é exatamente a linguagem que o faz existir".[112] A relação entre linguagem e a morte do ser, sendo essa primeira a que daria suporte para a segunda, encontra conexão com a experiência que Narciso vivenciou depois de seu contato com Eco.[112] O encontro entre Narciso e Eco é mediado por Eros e Tânato e isto indica um dos pontos relevantes para o estudo da violência na contemporaneidade.[126]

Psicologia e educação

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No Livro X, Ovídio apresenta o mito de Pigmaleão, rei de Chipre, um escultor que acaba se apaixonando por uma estátua que ele próprio modelou.[127] Num festival dedicado a Vênus, o artista pede à deusa que ela dê vida à sua obra, e seu desejo se realiza: portanto, o sentimento do escultor mudou a condição da estátua.[128] Os psicólogos demonstram esse grande poder que a expectativa tem sobre o comportamento das pessoas, e tal fenômeno foi denominado "Efeito Pigmaleão" na Psicologia positiva.[129] Sob tal ótica, "as pessoas tornam-se aquilo que outras esperam que se tornem".[129] Nos relacionamentos íntimos, como o namoro, acredita-se que a expectativa que cada namorado tem com o outro exerca uma influência extremamente positiva, e que está relacionada ao sucesso ou ao fracasso desse namoro.[129]

Jean-Léon Gérôme, Pigmaleão e Galateia, 1890: a visão de determinada pessoa em relação a outra determina a verdade que a primeira passa a demonstrar.[130]

Assim como no narcisismo, o Efeito Pigmaleão encontra uma abordagem também ligada ao marketing pessoal: "se [você] se vê com olhos negativos, identificando fraquezas e más qualidades, já se sente autorizado a ser assim, o que limitará significativamente suas escolhas e sua autoconfiança."[128] O "Efeito Pigmaleão" surge na década de 1960, sendo apresentado pela primeira vez em público por Rosenthal e Jacobson por meio do artigo Teachers expectancies: Determinants of pupils IQ gains (1966), e posteriormente com o livro Pygmalion in the classroom: Teacher expectation and pupils intellectual development (1968).[131] Aqui, o efeito é engendrado em atividades práticas dentro da área de educação em sala de aula. As observações de Rosenthal e Jacobson afirmavam que a inteligência dos alunos era maleável a ponto de as opiniões dos professores serem determinantes no aumento ou na diminuição dos seus níveis intelectuais.[131] O "Efeito de Pigmaleão" possui conexões com a ideia da profecia que se auto-realiza, de Merton.[132] Subjacente, está a crença de que as grandes e marcantes mudanças se apoiam no cruzamento de conversas efetivas, num verdadeiro diálogo que permite a múltiplias realidades e valores intersectarem-se para construir novas possibilidades.

Embora as versões mais remotas de Pigmaleão já descrevessem a relação amorosa entre um homem e uma estátua, é em Ovídio que encontramos a apologia da obra de arte perfeita, uma vez que Pigmaleão apaixona-se pela estátua porque a fez ter forma "de uma verdadeira donzela" nunca vista em outras antes.[133] A ênfase é projetada na perfeição da estátua e não no comportamento desviante de uma personagem masculina, de modo que Pigmaleão não apaixona-se pela estátua em si, mas "pelo resultado das suas próprias qualidades artísticas".[134] Desse modo, "Pigmalião tinha conseguido dar à estátua o aspecto [...] de uma verdadeira donzela ao presenteá-lo com a realização do seu desejo não-expresso, recompensa a arte do escultor com uma imitação sua, que reproduz não a imagem esculpida pelo artista, mas a 'verdadeira donzela' a que a obra de Pigmalião era, por arte, semelhante."[135] Pigmaleão tornou-se a prova do poder que uma imagem tem sobre o observador, principalmente se o observador domina de maneira esclarecedora e compreensiva a imagem observada em muitas perspectivas e em artefatos variados, como ocorre com os artistas e suas obras.[136]

A abordagem das quatro idades míticas do homem apresentada em Metamorfoses pode ser vista como uma relação entre os elementos das sociedades humanas: Metamorfoses fala acerca de nascimento e morte, de contradições e de conflitos entre as mais estreitas relações parentescas e íntimas, entre divindades, competição, poder, dominação, etc.[137] Aqui, o poema de Ovídio traria a noção de bonança e de adversidade, além da noção de trabalho, uma vez que o homem começa a agir sobre a natureza para extrair de sua terra o sustento e a sobrevivência.[137]

Vegetarianismo

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O Livro XV da Metamorfoses talvez apresente uma simpatia entre Ovídio e o pensamento de Pitágoras.

No último livro de Metamorfoses, Ovídio transcorre sobre Pitágoras, e escreve o que seria seu discurso. Alguns adeptos da filosofia vegetariana encontram no poema o que talvez seja uma espécie de simpatia por parte de Ovídio com o pensamento do matemático (considerado o "Pai do Vegetarianismo no Ocidente").[138][139] O seguinte trecho da Metamorfoses, Livro XV, chamado "Discurso de Pitágoras",[140] é usado para tal fim:

" 'Se homens com carne mortal precisam ser alimentados,
E mastigar com dentes sangrentos o pão que respira;
O que é isso senão devorar nossos convidados,
E barbaramente reprisar os banquetes dos ciclopes?
Enquanto a Terra não só pode satisfazer suas necessidades,
Mas, pródiga em suas provisões, sustentar a luxúria;
Um banquete sem culpa administra com gosto,
E sem sangue é pródiga em satisfazer.' "[141]

Sustentabilidade

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Em Metamorfoses, os deuses, semideuses e humanos se transformam, assumem outras formas. Tal característica presente em várias tradições culturais e religiosas suscita nos ecologistas a ideia de que os poetas já apresentavam o objetivo da reciclagem e a prática de que é possível reaproveitar materiais e transformá-los em uma segunda coisa que, em essência, permanece a mesma.[142] Um dos trechos iniciais de Metamorfoses ("Então nasceu o homem, dizem, à imagem de Deus,/ ou da Terra, talvez, que tão recentemente apartada/ do velho fogo dos céus, ainda retinha/ alguma semente da força celestial que encantou/ os deuses ao surgir com vida do barro e da água"), cujo vínculo primário é estabelecido com a Terra, é encarado, sob essa perspectiva de sustentabilidade, como o "mote de grande parte do movimento planetário por salvar a própria Terra."[142]

Contexto histórico

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Metamorfoses de Ovídio obteve um imediato sucesso (embora Quintiliano considerasse sua Medeia como obra-prima),[143] que ameaça a popularidade da Eneida de Virgílio. Essa obra definitiva da mitologia[144] foi usada por uma afirmação jocosa de Séneca, em seu Apocolocyntosis (divi Claudii), quando o filósofo diz que a deificação de Cláudio deveria ser adicionada no poema ovidiano.[145] Metamorfoses manteve sua popularidade em toda a Antiguidade Tardia e na Idade Média, e possui um alto número de originais sobreviventes (mais de 400);[146] as mais recentes dessas três cópias fragmentadas contém trechos dos Livros I, II e III, datando do século XIX.[147]

A colaboração de esforços editoriais tem investigado os vários manuscritos de Metamorfoses, cerca de quarenta e cinco textos completos ou fragmentados,[148] todos decorrentes de um arquétipo gaulês.[149] Com base na tradição manuscrita ou de restauração por conjectura, o resultado de vários séculos de leitura crítica significa que o poema se estabeleceu firmemente ao longo dos séculos.[149]

Contudo, nas antologias ovidianas com objetivos escolares realizadas pelos jesuítas portugueses do século XVI, há várias censuras de seus poemas[150] e citações de Platão, que dizia: admonuit ne fabulae quae adolescentibus traderentur legendae aliquid vitii continerent, quod in mores redundare posset[151] ("ach'ertiu Platão que os textos 16 dados a 1er aos jovens não deveriam conter vícios susceptíveis de afectar os [bons] costumes").[152] Trata-se de um pensamento de que as obras ovidianas, e Metamorfoses está inclusa, apresentam uma poesia elegantíssima, digna de ser apresentada a adolescentes com fim escolares, mas que é capaz de corromper os jovens.[153]

Ao longo dos séculos, no entanto, Metamorfoses foi aproveitada por estudos psicanalíticos, por educadores, sociólogos, ecologistas, etc (Ver subseção Interpretações). Seu caráter poético voltado à transmutação deu à obra ovidiana um aspecto de mudanças humanas que apontam para efeitos de educação resultantes de níveis de humanidade diferenciados.[154]

Evoluíram até os nossos dias três gêneros da Antiguidade Clássica:

  • gênero épico, que "narrava fatos históricos a mitos e lendas, desenvolveu-se como gênero narrativo que gerou o romance";[155]
  • gênero lírico, que "ampliou-se em seu caráter subjetivo, evolvendo a lírica contemporânea",[155]
  • e o gênero dramático, que "uniu-se ao teatro, pressupondo a existência de um público que se emocionaria, através do pathos da dor ou do prazer".[155]

Os três gêneros eram vistos de forma isolada - não havia mistura entre eles.[155] Ocorre que após o classicismo francês, que desconsiderava uma mistura de gêneros em uma só obra, o barroco e o maneirismo começaram a questionar tal posicionamento.[155] Para os críticos modernos, essa complexidade e a divisão de opiniões quanto tal assunto encontra nas obras ovidianas um exemplo: Metamorfoses, embora verse sobre deuses e seja composta no verso heroico, não é classificada como uma epopeia.[155] Devido a esses problemas de conceituação, defendeu-se a mistura dos gêneros. Com o advento do evolucionismo e uma preocupação maior com a historicidade do gênero, admitiu-se a mistura de gêneros, a subdivisão e a existência de novos gêneros.[156]

De fato, críticos modernos não desconsideram o pensamento de que uma obra pode possuir aspectos líricos sem ser necessariamente lírica, ou trágicos sem ser precisamente uma tragédia. Para Frye, por exemplo, "…podemos acrescentar o corolário de que a tragédia é algo maior do que uma fase do drama grego. Podemos também achar a tragédia em obras literárias que não são dramas."[157] Contudo, de certa forma Metamorfoses continua sendo vista como "anti-épica", na medida em que não existe um protagonista herói, a menos que você visualize as presas dos deuses como heróis em suas fugas para escaparem dos castigos e punições das divindades.[104] Em vez de uma grande aventura, os estudiosos acreditam que Metamorfoses apresenta o desejo de Ovídio escrever exclusivamente sobre as vontades e paixões dos deuses e dos povos.[104]

Versos iniciais de Metamorfoses

Escrito em hexâmetro dactílico, o poema narrativo Metamorfoses expõe uma variedade de elementos apresentados por uma linguagem rebuscada que comprova a erudição e o talento de Ovídio.[39] O hexâmetro datílico, usado também por Virgílio e Homero, é formado de seis células métrica chamadas dátilo: - u u .[158] Ovídio faz uso de metonímias,[52] e de argumentação: a figura de Vênus foi presentada por Ovídio pretéritamente em Remedia Amoris, poema onde a paixão é tratada como doença (trata-se de uma longa tradição: a palavra em língua grega pathos designa em grego "paixão" de forma geral, incluindo medo, ira, ou seja, "tudo aquilo que afeta corpo ou alma"),[159] ao contrário da anterior A Arte de Amar, na qual o sentimento é visto de forma mais positiva.[53] Aqui, o objetivo é saber em que medida a presença de Vênus em Remedia Amoris é retomada em Metamorfoses, ou qual é a relação entre a Vênus de Metamorfoses e a já representada em Remedia Amoris. Para responder tais questões, é necessário verificar o uso do termo "Venus" em ambos os poemas - o uso metonímico consiste na utilização, durante a narrativa do termo "Venus" como equivalente a "amor".[160] Ovídio substitui constantemente o substantivo comum que é atributo da deusa mitológica pelo seu nome: "Agora vou te dizer o que fazer durante o ato mesmo de Vênus",[161] recurso esse comum na poesia antiga.[160] Sob tal raciocínio, com sua intertextualidade e sua intratextualidade, pode-se concluir que Ovídio recorre à mitologia, à ficção, para exemplificar e convencer o leitor da verdade de seus preceitos.[162]

Sofisticação do mito

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Segundo Enzo Marmorale, a fantasia de Ovídio "era mais que nunca adequada à variedade, que lhe permitia passar do riso ao pranto, da tragédia à farsa, e de pôr em evidência a sua paleta rica de cores e dos mais raros matizes".[163] Com o intuito de explicar o universo, a alma humana e Roma inserida neste contexto, Ovídio utilizou do realismo e se viu forçado a manter no poema o tom jocoso e divertido que apresenta em muitos outras obras de sua autoria.[164] Para tal fim, envolve suas histórias numa atmofera de cotidianeidade, descrevendo ambientes com riqueza de detalhes, fazendo com que o cotidiano torne-se heroico.[164] Metamorfoses pertence ao auge da literatura latina, e à fase madura de Ovídio, de modo que suas ideias passam a ser mais claras do que nas poesias pretéritas, se esvairando em manifestações de polêmicas em torno de assuntos como cosmologia, história, casamento, mulher e sociedade, e, principalmente, o amor.[164]

Usando as qualidades pertencentes a uma metamorfose, Ovídio introduz em alguns mitos, notavelmente no de Erisícton, "uma maldade encarnada e abre um simulacro de jogo de moralidade".[165] O retrato que ele faz da fome, porém, na grotesca representação da fúria desse personagem mítico, o poeta latino "desvia a atenção do leitor de uma linha de pensamento mais séria, relacionada ao crime e à punição [...]."[165] Segundo Octavio Paz, a poesia "é metamorfose, mudança, e por isso confina com a magia e outras tentativas para transformar o homem e fazer deste ou aquele esse outro que é ele mesmo".[166] Metamorfoses pode ser vista como um dos fatores que fizeram com que Ovídio sofisticasse o mito por retratar o fenômeno e as qualidades inerentes de tal fenômeno.[167] Por realizar um trabalho de narrativa original, muitos críticos acreditam que Ovídio tenha cumprido seu desejo de criar uma ambição unitária em Metamorfoses.[168]

Influência e diálogos

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Lucius Apuleio, escritor latino que viveu entre os anos de 125 a 170 durante o período imperial de Otávio Augusto,[169] foi influenciado por Ovídio até no modo de escrever.[170] A obra mais famosa de Apuleio é Metamorphoseon Libri XI (Onze livros de metamorfose), mais conhecida como O asno de ouro. Ele apropria-se do nome e de informações das Metamorfoses para compor sua obra."[171] Lúcio, o personagem principal, é transformado num burro por magia, de modo que dialoga com os atos de transformação na Metamorfoses de Ovídio.[172] O tom satírico e bem-humorado de Ovídio foi aproveitado por Apuleio em Cupido e Psiquê, "sobretudo por parecer que conta a história despreocupadamente, distraindo-se com o mito, sem necessariamente acreditar no que escreve".[172] Em suma, Ovídio serviu como fundamental fonte para a obra de Apuleio.[172]

A poesia de Chaucer é permeada por alusões ovidianas.[173]

No século XIV, surge o inglês Geoffrey Chaucer, que vai se tornar o primeiro a contar a história de Píramo e Tisbe (Livro IV) em língua inglesa, através de seu The Legend of Good Women. Tudo indica que ele era fluente em latim e que amava os clássicos: A Casa da Fama incorpora muitas fontes como Virgílio e Ovídio. Essa obra, de tão imbuída que é nos clássicos e na sua mitologia, aponta que provavelmente Chaucer tenha lido os textos originais dos romanos.[173] Levando em consideração que Metamorfoses era amplamente lida e conhecida no período medieval, muitos contemporâneos e amigos de Chaucer conheciam os mitos ovidianos através de uma tradução em língua francesa do século XIV, chamada Ovide Moralisé.[173] (Lembrando que Chaucer era totalmente familiarizado com o francês, de modo que traduziu Roman de la rose para sua língua).[174] Essa versão, que alegorizava a obra e abrangia um tom cristão, influenciou Chaucer quando ele adapta a história de Alcione e Ceix (Livro XI de Metamorfoses) para compor O Livro da Duquesa, comemorando a morte de Branca de Lencastre, esposa de João de Gante.[173] Em Contos da Cantuária, Chaucer vai apresentar referências mais diretas de Ovídio do que de qualquer outro autor.[175] No conto O Reitor, Chaucer está em conformidade com os antigos "contos de casamento", em que aborda problemas de relações domésticas,[176] e utiliza o tema do crime de indiscrição, usado em Ovídio no mito do corvo que, de branco original, tornou-se preto como castigo.[177] Chaucer enfatiza o relacionamento sexual, portanto seu principal tema é a desconfiança e o julgamento prévio, como a causa da morte do amado.[177] No Livro I e II de Metamorfoses, Apolo aparece como um deus que é um músico de renome, e que já havia matado a serpente Píton com uma flecha.[178] Embora seja um deus, seu relacionamento com Coronis se assemelha a qualquer outro casamento humano, e na adaptação de Chaucer, o Reitor nem sequer refere-se a Febo como divino.[176] Chaucer dá mais atenção às questões internas da história, enquanto dedica pouca atenção ao corvo, que é, afinal, o personagem-título do conto, embora o autor deixe-o fora da história por completo, combinando, assim, as duas metamorfoses em uma.[179] Por fim, pode-se dizer que Chaucer adquire as visões já utilizadas antes por Ovídio, conseguindo manter o romantismo de seu antecessor.[176]

Para A Divina Comédia de Dante, Metamorfoses significou muito.[180]

Dante, ainda na Idade Média, em sua magnum opus A Divina Comédia segue de perto as Metamorfoses no que diz respeito primeiramente à simbiose que o poeta italiano realiza quando escreve:

la dura petra
che parla e sente come fosse donna.

Divina Comédia é estruturada em diversos índices alegóricos, porque "a transformação não possui mais o sentido de reinventar a vida sob uma crise, mas é o espelho, a cristalização da própria crise".[22] Alguns estudiosos notam que o mundo mitológico das Metamorfoses é "uma encenação de um inferno, onde os monstros mitológicos se debatem na punição".[180]

Shakespeare teve por Metamorfoses uma fonte de fascínio e inspiração durante toda sua vida.[181]

No fim do século 1500 e início do século 1600, o mais famoso dramaturgo de todos os tempos,[182][183][184] William Shakespeare, aparece para nos mostrar que Metamorfoses figurou como uma fonte de fascínio e inspiração ao longo de toda sua vida.[181] Para começar, os acadêmicos tradicionais crêem que Shakespeare estava familiriazado com esse poema desde a infância, uma vez que Metamorfoses circulava entre as escolas da época.[185] Em 1567, Arthur Golding publica sua tradução dos 15 livros de Metamorfoses para o inglês. Muito provavelmente Shakespeare acreditava que esse era o mais belo livro da língua.[23] Seja verdade ou não, os estudiosos notam muitas semelhanças entre os dois grandes autores. Em Sonho de uma Noite de Verão, por exemplo, Shakespeare pega emprestado o conceito de metamorfose pela transformação parcial de Bottom, uma clara referência ao já citado Apuleio.[186] As fadas de Shakespeare, assim como os deuses de Ovídio, são ameaçadoras e poderosas, com um controle sobre a natureza e os homens, mesmo que sejam benéficas.[186] Mas desde as suas primeiras peças, como Titus Andronicus,[187] notamos semelhanças com Metamorfoses: o mito de Tereu e Procne, no Livro VI, narra a história amorosa entre esses dois casais que logo é desfeita quando Tereu apaixona-se loucamente pela irmã de sua esposa, Filomela, que, negando entregar-se a ele, é violentada e trancafiada.[188] Em Titus Andronicus, Lavínia é estuprada e os estupradores cortam-lhe a língua e as mãos para que não possa contar nada, enquanto que seu pai, Andronicus, acaba encontrando os criminosos, decepando suas cabeças e preparando com suas carnes uma torta - enquanto que em Ovídio Procne, ao saber que seu marido mutilou e estuprou sua irmã, prepara o próprio filho para que ele comesse sem saber.[23] E tem-se outra vez a história de Píramo e Tisbe, Livro IV, que mais tarde se tornará Romeu e Julieta.[11][189][190] Ao menos há semelhanças em ambos os autores: os pais do casal detestam-se mutuamente, e Píramo acaba acreditando que Tisbe está morta, assim como Romeu vê Julieta adormecida e supõe que morreu, dando fim à tragédia.[191] Alguns dizem que Shakespeare sentia-se orgulhoso por ser um "famoso imitador de Ovídio".[186]

Cruz e Silva, no século XVIII, produz Metamorfoses, onde logo na epígrafe tem-se semelhanças com Ovídio: in noua fert animus mutatas dicere formas [...][192] Tal como na mitologia clássica, as personagens femininas, embora apresentem nomes brasileiros, são ninfas, donzelas, povoam campos, bosques, águas, etc.[193] Cruz e Silva recorre ao estilo clássico, em particular aos moldes de Metamorfoses de Ovídio,[194] mas realiza uma obra focada no folclore brasileiro e na realidade do Brasil.[195][196] Cláudio Manuel da Costa, por sua vez, vai abordar o mito de Acteon e Diana[197] e o esquema de metamorfose[198] em sua Fábula do Ribeirão do Carmo.

Kafka e Ovídio "descrevem os efeitos de uma pessoa aflita e as tentativas de enfrentar a própria situação".[165]

Franz Kafka, já no século XX, escreve o conto A Metamorfose (1912) utilizando a metáfora das pessoas que são colocadas à margem da sociedade.[199] O personagem principal, Gregor Samsa, ao contrário do "blasfemador e arrogante"[199] Erisícton de Ovídio, é um caixeiro-viajante que trabalha muito para sustentar os pais e sua irmã jovem. No Erisícton de Ovídio, o personagem tem uma filha, Mestra, que sempre arranja comida para o pai, enquanto que Gregor de Kafka possui uma irmã que se digna a entregar-lhe alimento mesmo sentindo repulsa dele. A metamorfose em Kafka é uma "alteração de comportamentos, atitudes, sentimentos e opiniões", enquanto que em Ovídio se limita a uma modificação física.[200][201] Em Ovídio, Erisícton se devora de tanta fome, enquanto que em Kafka, Gregor morre porque deixa de comer.[202] Partindo da ótica de que ambos os autores narram a transformação de humanos em animais, e que em Kafka o personagem não pode se comunicar por causa da voz fina que adquire, e que em Ovídio os personagens perdem a humanidade por conta da perda da fala, os estudiosos afirmam que em ambos há uma máxima: "quando perdemos nossa língua, nós nos perdemos".[203] No Livro I, a transformação de Io faz com que ela perca a voz, e isso é um claro elo entre linguagem e individualidade, enquanto que em Gregor a rejeição de identidade surge primeiramente de dentro dele.[203] Assim, notamos que em Kafka e em Ovídio, o ser e a linguagem são uma coisa só.[203] O estilo literário de ambos diverge muito, mas o ponto principal para os estudiosos é perceber que a diferença entre Ovídio e Kafka não reside em seus pensamentos acerca do que constitui um ser humano, mas sim no tratamento do diálogo de si-mesmo de suas narrativas.[203]

Em 1985, Manoel de Barros publica Livro de Pré-Coisas, uma prosa-poética onde ele conduz o leitor pelas entrâncias do Pantanal. Nota-se alguns pontos que se assemelham com o poema Metamorfoses. Em Ovídio, tem-se um relato da cosmogonia produzida aos moldes tradicionais, mas em Manoel de Barros encontramos "um ambiente já construído que sofrerá modificações no decorrer da narrativa, até tornar-se capaz de abrigar significativamente as mais variadas metamorfoses".[204] Ambos os universos de ambos os autores iniciam no estado pré: em Ovídio, tem-se a "massa confusa e disforme", e em Barros tem-se um lugar que vai receber a "chuva transformadora":

"O mundo foi renovado, durante a noite, com as chuvas. Sai garota pelo piquete com olho de descobrir [...] A pelagem do gado está limpa. A alma do fazendeiro está limpa. O roceiro está alegre na roça, porque a sua planta está salva. Pequenos caracóis pregam saliva nas roseiras. E a primavera imatura das araras sobrevoa nossas cabeças com sua voz rachada verde."[205]

Igualmente, tem-se em Metamorfose um dilúvio que renovará o mundo. Diz-se que "Manoel de Barros [...] consegue adequar a poética ovidiana e atribuir-lhe uma nova forma, em novo espaço e em novo tempo".[206] Há, em Livro de Pré-Coisas, um objetivo de retornar ("pré") e num desses retornos Manoel encontra Ovídio e revaloriza sua poesia.[206]

Arquitetura, escultura e música

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O vasto jardim do Palácio de Versalhes.

Os construtores do Palácio de Versalhes se espelharam em Metamorfoses para construírem alguns de seus territórios.[6] O Palácio foi construído sob o domínio de Luís XIV de França, no absolutismo, provavelmente para exaltar seu poder majestático.[207] Para viabilizar o projeto, Colbert, por volta de 1660, convocou os famosos Irmãos Perrault, Charles e Claude, o arquiteto Louis Le Vau, o pintor Charles Le Brun e o paisagista André Le Nôtre, que formaram a Direção das Artes.[208] A Direção das Artes idealizou um conjunto de edifícios cercados por quadros geométricos constituídos por flores e plantas, com diversos bosques e estradas e canais estupendos. Basearam-se, portanto, nas imagens soltas escritas por Ovídio no Livro II de sua Metamorfoses.[208] Basearam-se também no pensamento de Descartes, que dizia que o homem deveria tornar-se o "senhor e dono da natureza".[208]

Bernini, Apolo e Dafne (1622-1625), Galleria Borghese, Roma.

Gian Lorenzo Bernini, escultor do barroco italiano, concluiu Apolo e Dafne em 1625, inspirado no Livro I de Metamorfoses,[209] onde Apolo, atingido por uma flecha de Cupido, corre atrás da ninfa fugitiva Dafne. No mármore de 23 cm., enxergamos uma textura da pele da figura de Dafne que aos poucos vai se transformando em casca e em folhas de uma árvore, para simbolizar sua metamorfose poética num loureiro para fugir do deus do sol.[210] Pode-se dizer que em âmbito de escultura, Apolo e Dafne é uma das obras mais representativas de sensualidade e beleza acerca da poesia de Ovídio.[209] De acordo com os críticos, ao lado de Davi, Eneias, Anquise e Ascânio, e O Rapto de Proserpina, a escultura faz parte de uma interpretação clássica do século XVII devido ao "efeito movimento" dessas imagens.[209]

Em 1597, Jacopo Peri compõe o que seria a primeira ópera do mundo, inspirada no mito de Dafne das Metamorfoses de Ovídio.[211]

Em 1597, o mesmo episódio amoroso foi usado por Jacopo Peri quando este compõe Dafne, o mais antigo trabalho conhecido que, pelos padrões modernos, poderia ser considerado uma ópera.[211][212][213] Com libretto de Ottavio Rinuccini, a obra é pontuada por um conjunto muito menor do que as óperas pós-Claudio Monteverdi, ou seja, constitui-se de um cravo, um alaúde, uma viola, um achalaúde, e uma flauta tripla.[214] Ao mesmo tempo, Peri elaborou discursos melódicos e recitativos como parte central da obra.[215] A maioria das músicas de Peri foram perdidas ao longo das décadas mas, talvez por conta de Dafne ter sido muito popular na Europa da época, a linha 455 do libretto publicado ainda sobrevive nos dias de hoje.[216][217] Em 1938, Richard Strauss compôs uma ópera homônima, intitulada Dafne, com um libretto significativamente retirado da obra de Ovídio.[218] Em 1783, Karl Ditters von Dittersdorf escreveu doze sinfonias com histórias selecionadas das Metamorfoses; apenas seis sobreviveram, correspondendo às fábulas dos primeiros seis livros do poema.[219] Mais recentemente, em 1951, o britânico Benjamin Britten escreveu uma peça para Oboé incorporando seis das personagens míticas de Ovídio. Na música popular, destaca-se notavelmente os versos de Sampa (1978), compostos por Caetano Veloso, onde Narciso é citado para referir-se à estranheza que o baiano sentiu ao chegar em São Paulo: Quando eu te encarei/Frente a frente/Não vi o meu rosto/Chamei de mau gosto o que vi/de mau gosto o mau gosto/É que Narciso acha feio/o que não é espelho/E a mente apavora o que ainda/Não é mesmo velho/Nada do que não era antes/quando não somos mutantes [...]"[220] Aqui, tem-se a questão "do sujeito que somente reconhece o seu próprio 'eu' como parâmetro ou medida de perfeição, e por isso abandona o diálogo com as diferenças ou nuances, existentes entre as pessoas."[221]

Em Metamorfose, os versos video meliora proboque, deteriora sequor[222] ("Vejo o que é melhor e aprovo, e sigo o que é pior"), dita por Medeia no Livro VII, foram repetidos tanto por Francis Bacon como por Spinoza e Locke, para se referir ao akrazía, fraqueza de vontade, e correlacioná-la aos vícios.[223]

Rosseau e Ovídio dialogam no que diz respeito a busca do passado humano. Retrato de jean-Jacques Rousseau, Ramsay, 1766.

Rosseau, ao escrever seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1989), propôs a examinar o que seria "o primeiro embrião da espécie".[224] Assim ele escreve:

"fartando-se sob um carvalho, saciando-se no primeiro riacho, encontrando seu leito ao pé da mesma árvore que lhe forneceu o repasto, e eis satisfeitas as suas necessidades. A terra abandonada à sua fertilidade natural e coberta de imensas florestas que o machado jamais mutilou oferece a cada passo provisões e abrigo aos animais de toda espécie. [...] As crianças, trazendo ao mundo a excelente constituição dos pais, e fortificando-a pelos mesmos exercícios que a produziram, adquirem, assim, todo vigor de que a espécie humana é capaz."[225]

Essa volta ao passado recorre à Idade de Ouro, fazendo com que o texto filosófico de Rosseau dialogue com a poesia de Ovídio porque em tal Era "não havia leis nem eram necessários juízes, não existia o medo, a natureza era intacta e constituía-se no próprio lar dos homens."[21] Da Idade do Ouro, como já vimos na sub-seção Metamorfoses#Cosmogonia e Eras do Homem, vamos para a Idade de Prata, depois para a Idade de Bronze, onde a índole humana decai moralmente, e tal decadência, "provocada pelo desejo de possuir, pelo solo demarcado, pela violência e a necessidade de leis",[21] é mostrada em Rousseau como forma de focalizar o estado de natureza subordinado a uma história:

"O exemplo dos selvagens, que foram encontrados quase todos nesse estágio, parece confirmar que o gênero humano fora feito para assim permanecer para sempre, que esse estado é a verdadeira juventude do mundo, e que todos os progressos ulteriores foram, em aparência, outros tantos passos para a perfeição do indivíduo, mas, na verdade, para a decrepitude da espécie."[226]

Reputação e recepção

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Diz-se que Ovídio teve até os cinquenta anos de idade tudo o que sonha um poeta: fama, fortuna, e mulheres.[227] Após essa fase social e feliz, terminou sendo censurado e expatriado no processo de escrita de Fastos, posterior a Metamorfoses.[228] A corte de Augusto enviou-o ao Ponto Euxino, Mar Negro, região longíquoa de Roma.[9] O estudioso Marmorale afirmou que o "exílio de Ovídio é um dos mistérios da Antiguidade",[229] de modo que não se sabe ao certo seu motivo,[10][230] embora existam duas hipóteses interessantes: ou Ovídio fora indiscreto em um de seus poemas a respeito de algum fato íntimo do imperador ou de sua família,[12] ou o caráter temático da obra ovidiana não lhe agradou. Se a segunda hipótese for a verdadeira, confirma-se a opinião de que a mutação em Metamorfose[231] chocou-se de imediato com o pensamento de ordem e estabilidade do Império de Augusto.[11]

Ovídio Banido de Roma, pintura a óleo de Joseph Mallord William Turner, 1838.

Contudo, para Manuel Rolph de Viveiros Cabeceiras, Metamorfoses "não pode ser associado a propósitos anti-augustanos, apesar de nele existirem elementos que o permitem identificá-lo como o carmina (o poema) responsável por seu desterro, posto que suas ousadias adquirem aqui conotações épicas".[164] Voltando à ótica da segunda hipótese, a Ars Amatoria é apontada, para alguns, como a principal razão de seu banimento.[11][227] Existe ainda uma terceira hipótese: uma vez que descorre sobre sedução e erotismo, Ars Amatoria teria sido um dos livros encontrados por Augusto nos aposentos de Júlia, sua ex-mulher.[227] Quando de súbito foi desterrado, no ano 8, mesmo ano que Metamorfoses tornou-se pública, sua vida mudou completamente. Para traçar esse momento da vida de Ovídio, Marisa Mencalha de Sousa assim narra tal acontecimento: "as Metamorfoses anunciavam a própria metamorfose da vida do poeta, aqueles dias felizes e descontraídos dos Amores e da Ars amatoria cederam lugar à tristeza, e o poeta passa definitivamente do riso ao pranto, com a composição dos Tristia e das Epistulae ex Ponto, elaborados no exílio, onde escreveu também Íbis e Haliêutica".[39]

Versões em língua portuguesa

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Geralmente, quando vai-se traduzir Metamorfoses na língua portuguesa, utiliza-se ou o decassílabo, ou o dodecassílabo, ou a prosa.[12] Carlos Alberto Nunes o traduziu em hexâmetro datílico, mas foi criticado pelos que diziam que isso "não era verso de língua portuguesa".[12] Abaixo algumas das edições recentes ou famosas do poema:

  • Ovídio (Org.) ; Bocage, Manuel Maria Barbosa du (Org.); OLIVA NETO, J. A. (Org.) . Metamorfoses. 2. ed. São Paulo: Hedra, 2007. v. 1. 232 p.
  • Ovídio (Org.) ; Bocage, Manuel Maria Barbosa du (Org.) ; OLIVA NETO, J. A. (Org.) . Metamorfoses de Ovídio, tradução de Bocage. 1. ed. São Paulo: Editora Hedra, 2000. v. 1.
  • Ovídio, Metamorfoses, Madras Editora, São Paulo, 2003, tradução de Vera Lucia Leitão Magyar.
  • OVÍDIO, P. As metamorfoses. Tradução de David Jardim Júnior. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint (Ediouro), 1983.
  • Ovídio, Metamorfoses. Trad. de Paulo Farmhouse Alberto, Cotovia, 2007.
  • Ovidio. (1983). As metamorfoses (D. Jardim Jr., trad.). Rio de Janeiro: Ediouro.
  • _____ . Metamorphoseon. Seleção das metamorfoses de Ovídio com anotações, comentários e crítica por A. J. D’ Azevedo. 2ª ed. São Paulo:Saraiva, 1953

Referências

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  4. a b c CABECEIRAS, p.7
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  6. a b c SCHILLING, Voltaire. Ovídio e a Idade do Ferro - A Metamorfose. Terra Educação, São Paulo. Disponível em http://educaterra.terra.com.br/voltaire/cultura/indice.htm
  7. Fastos é, de fato, inconcluso. Metamorfoses já estava terminado no ano do exílio, faltando apenas a demão final. MORA, p.1
  8. Em exílio, Ovídio afirmou que nunca chegou a dar o último toque no poema. Tristia 1, 7, 14.
  9. a b A. J. da Silva Azevedo
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  15. Ovídio, Metamorfoses, I, 89-162
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  24. TOIPA, p. 1 e seguintes
  25. SANTOS (iii), p. 1-resumo
  26. CRUZ, p. 1 e seguintes
  27. Trad. Paulo Farmhouse Alberto. Ovídio, Metamorfoses. Introdução, p. 26 Livros Cotovia. Lisboa, 2007.
  28. GROSSO, p. 1
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  30. Nome do autor não-definido, "Adorações e crenças". Consulta: 31/01/2009.
  31. Cícero desprezava os mitos, mas, como Varrão, era enfático em seu apoio para a religião e suas consecutivas instituições estatais. Cotta também ridicularizou tanto a acepção literal dos mitos como a alegórica, declarando rotundamente que ambas não teriam lugar na filosofia. Fonte: Gale (1994), p. 87-89
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  49. Sobrevivem apenas alguns fragmentos dos dez livros em que Ferecides narra episódios mitológicos. Cf. verbete "Pherecydes", em OCCL.
  50. HILL, 1999, p.175
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